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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Guerra no leste europeu

Por que o cessar-fogo na Ucrânia ainda está distante, mesmo com avanço nas negociações

Idoso em frente ao prédio onde morava, bombardeado pelas forças russas, em Kharkiv (Foto: EFE/EPA/VASILIY ZHLOBSKY)

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As negociações de paz entre Rússia e Ucrânia tiveram o maior progresso desde o início da guerra, em 24 de fevereiro. A Rússia afirmou que reduzirá “drasticamente" suas operações militares na região da capital, Kiev, e a Ucrânia concordou em aceitar um status de neutralidade e não entrar para a OTAN (aliança militar ocidental).

Mas isso não significa necessariamente que a paz está próxima. O fato de a Rússia diminuir a intensidade do combate próximo da capital não significa que Moscou tenha desistido de tomar Kiev.

O movimento também pode ser uma saída honrosa para um cenário militar complicado onde, sofrendo muitos contra-ataques, a Rússia não conseguiu cercar e contar as linhas de suprimentos da capital ucraniana.

A Ucrânia, por sua vez, se compromete a não deixar que as potências ocidentais instalem mísseis nem posicionem tropas em seu território.

Mas condiciona essa neutralidade a um mecanismo diplomático que precisa ser analisado de forma criteriosa. Ele funcionaria assim: no caso de uma nova invasão russa, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a França e a China ficariam obrigados a criar uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia e a mandar armas para o país logo a partir do terceiro dia de conflito.

A Ucrânia tenta ainda que também sejam definidos como países garantidores da paz Polônia, Israel, Turquia, Canadá, Alemanha e Itália.

Na prática, a diferença desse acordo em relação à entrada na OTAN é que os países garantidores não precisariam mandar seus militares para o terreno. Mas possivelmente seus pilotos teriam que se engajar em combates aéreos com os russos para implantar a zona de exclusão aérea - possibilidade que Washington está fazendo de tudo para evitar no atual conflito, argumentando que isso poderia levar à Terceira Guerra Mundial.

Essa promessa de intervenção dos países garantidores não se aplicaria, porém, às regiões separatistas de Lugansk e Donetsk e à província da Crimeia - isso porque seu status internacional não é regulado.

Pela proposta dos ucranianos, o destino da Crimeia e das províncias separatistas seria resolvido em um acordo paralelo, que teria 15 anos para ser concluído.

Outra grande questão é que a Ucrânia disse que só vai se tornar neutra por meio de um referendo, que só será realizado depois das tropas russas se retirarem totalmente do país. Isso poderia levar meses, no mínimo.

A exigência da retirada das tropas russas também significaria, na prática, que Moscou teria que abrir mão das conquistas territoriais mais tangíveis da guerra até agora: os territórios a sudeste do país que formam um corredor terrestre entre a Rússia e a Crimeia.

Moscou já havia tentado tomar militarmente a região em 2014, mas isso foi impedido por militares e partisans a partir da cidade de Mariupol - uma das mais bombardeadas na campanha atual.

A Rússia desistiu de Kiev?

Não é possível saber ainda se as tropas russas desistiram de tomar Kiev. O vice-ministro da defesa russo, Alexander Fomin, disse que a Rússia vai “reduzir drasticamente as operações de combate em Kiev e Chernigov para aumentar a confiança mútua”.

Relatórios de inteligência do Ministério da Defesa da Grã-Bretanha já haviam apontado que algumas unidades russas que operavam na região estavam retraindo para Belarus. A suspeita há alguns dias era que elas pretendiam se rearmar, receber mais combatentes e novamente avançar para o sul, em direção a Kiev.

Os russos, por sua vez, haviam dito que concentrariam suas operações no leste do país, e não na tomada da capital.

Embora Kiev tenha sido até hoje o principal foco dos esforços russos, a cidade é um objetivo político, mas não necessariamente um objetivo militar importante.

Análises dos serviços de inteligência ocidentais diziam que o objetivo da Rússia era tomar Kiev rapidamente, para conquistar o complexo de prédios do governo e assim capturar ou assassinar o presidente Volodymyr Zelensky.

Mesmo que assumíssemos que essa análise esteja correta, não é possível saber ainda se Moscou desistiu completamente do plano. Os russos chegaram a afirmar que retirariam de sua lista de exigências a “desnazificação” do país.

A ideia de que o governo ucraniano teria orientação nazista é propaganda de guerra, mas o termo desnazificação pode ser interpretado como a queda do governo e substituição por um outro mais amigável à Rússia.

No leste do país, os objetivos têm natureza militar menos contestável.

Ou seja, a conquista da capital Kiev, no norte, não daria um grande ganho de território para a Rússia e só aconteceria a um custo elevadíssimo de vidas de combatentes e perdas de equipamentos - pois a cidade é hoje uma verdadeira fortaleza.

Já no leste, as forças russas tentam cercar a nata do exército ucraniano que combate na região de Donbass. Esses ucranianos defendem posições e trincheiras que vêm sendo construídas desde 2014 - quando o país entrou em guerra com as províncias separatistas de Lugansk e Donetsk.

Se essa manobra militar russa for concluída com sucesso, pode dar a Moscou o controle de parcela considerável do território ucraniano - com um risco bem menor de perdas de militares, veículos e armas.

Nesta fase diplomática, que ainda pode ser considerada inicial, é melhor ser cauteloso. Questões como o destino do território já conquistado pela Rússia e qual apoio a proposta de neutralidade da Ucrânia receberá de seus países garantidores têm que ser resolvidas para que um cessar-fogo e um posterior acordo de paz duradoura sejam estabelecidos.

Mas o presidente Vladimir Putin precisa apresentar ao seu público interno uma conquista que possa ser interpretada como vitória incontestável no campo de batalha.

Já a Ucrânia não quer repetir nos dias atuais o Memorando de Budapeste, de 1994. Nele, os ucranianos concordaram em abrir mão das armas nucleares que estavam em seu país em troca de perdão de dívidas e da garantia de que os Estados Unidos e a Rússia garantiriam sua segurança e integridade territorial. A guerra atual prova que o acordo era só um pedaço de papel sem valor.

As bolsas de valores reagiram muito positivamente à evolução da negociação diplomática nesta terça-feira (29). Mas, enquanto isso, a mídia estatal russa divulga internamente que a Ucrânia será parte da Rússia a qualquer preço.

Já na Ucrânia, o povo vê as conquistas diplomáticas com ceticismo. Para eles, Putin só está ganhando tempo para conquistar mais território.

Os negociadores russos e ucranianos devem continuar debatendo por pelo menos duas semanas. Nesse período, os ucranianos vão tentar convencer os países garantidores - especialmente EUA, Grã-Bretanha, França e China - a apoiar sua proposta.

No mínimo, só depois que as maiores divergências forem sanadas é que poderemos ver um encontro em pessoa entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky para negociar um cessar-fogo.

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