O risco de acidente na usina nuclear de Zaporizhzhia, no sul da Ucrânia, está mais ligado a uma sucessão de falhas de equipamentos e erros - catalisados pela guerra - do que à possibilidade de um disparo direto atingir um reator. Apesar disso, o impacto da concretização de um acidente nuclear seria tão alto que a comunidade internacional aumentou dramaticamente nesta semana a pressão sobre a Rússia, que controla a instalação nuclear.
Pela primeira vez na história, uma usina nuclear de grande porte está no meio do campo de batalha em uma guerra de alta intensidade. Ela é a maior usina da Europa e fica na cidade de Enerhodar, no oblast (estado) de Zaporizhzhia. É responsável por 19% do suprimento de energia elétrica da Ucrânia.
O complexo foi invadido por forças russas em 4 de março. A ação provocou um incêndio em instalações não essenciais e deflagrou uma onda de críticas internacionais. A tomada da usina foi parte de um avanço rápido do exército russo que resultou na captura de uma grande faixa do sul da Ucrânia logo na primeira semana de guerra.
A frente de batalha logo avançou rumo nordeste, em direção à cidade de Zaporizhzhia, capital do oblast. Assim, a região da usina, em território ocupado, passou a desfrutar de relativa tranquilidade.
Uma parte dos cerca de 10 mil funcionários continuou operando a planta, porém de maneira forçada pelos russos. Ela passou a operar em capacidade mínima, com apenas dois dos seis reatores funcionando, mas continua fornecendo energia para regiões sob controle do governo ucraniano.
Mesmo com os combates ocorrendo a cerca de 60 quilômetros da usina, a possibilidade de um míssil atingir um dos seis reatores nucleares sempre apavorou moradores da região. Testemunhei isso na manhã de 26 de abril, quando a cidade de Zaporizhzia foi bombardeada. Rapidamente se espalharam pela região relatos de pessoas que viram mísseis de cruzeiro sobrevoarem a usina. O pânico se espalhou pela cidade, mas não houve danos à instalação nuclear.
Porém, relatos de explosões na usina voltaram a ocorrer em agosto. Uma central de bombeiros e centrais de medição de radiação foram destruídas. Rússia e Ucrânia culparam uma à outra pelos ataques.
Esses eventos começaram a ocorrer após o início de uma grande contraofensiva ucraniana para tentar retomar parte do oblast de Kherson, que fica cerca de 180 quilômetros a sudoeste de Enerhodar, ao longo do rio Dnipro. Até então, os maiores combates da guerra haviam se concentrado no norte e no leste do país.
Ao menos 20 mil combatentes russos foram redirecionados para o sul com o objetivo de frustrar a contraofensiva ucraniana. Unidades da artilharia russas foram então posicionadas entre os seis reatores da usina para disparar principalmente contra a cidade de Nikopol ou contra tropas ucranianas que tentassem cruzar o rio Dnipro. Ou seja, a usina passou a ser usada por Moscou como uma espécie de escudo, possibilitando que os russos disparem livremente sem ameaça de contra-ataque.
A Rússia acusou a Ucrânia de atos de terrorismo, por supostamente disparar contra a usina. Já as autoridades ucranianas dizem ter provas de que os russos estariam forjando falsos ataques para tentar culpar o governo do presidente Volodymyr Zelensky por facilitar uma catástrofe.
Segundo os ucranianos, uma equipe de filmagem russa teria sido flagrada encenando um falso ataque ucraniano. A filmagem seria usada na guerra de informação.
Não é possível verificar por ora, de forma independente, qual é a versão correta desses fatos.
Riscos reais à usina
Sabe-se que Rússia e Ucrânia combatem na região de Zaporizhzhia principalmente usando fogos de artilharia. Eles incluem disparos de morteiros e obuseiros (que são tipos de canhões que disparam granadas em trajetória de parábola) e foguetes. Esses armamentos podem destruir veículos blindados e fortificações.
Porém, todos os reatores nucleares e piscinas de material radioativo descartado na usina de Zaporizhzhia estão protegidos sob estruturas de concreto e aço com cerca de 1,2 metro de espessura. Elas são suficientes para aguentar impactos acidentais de artilharia à colisão de uma aeronave de grandes proporções.
Porém, existe a possibilidade de vazamento radioativo provocado por falhas nos sistemas de resfriamento do combustível nuclear.
A usina de Enerhodar foi construída nos anos de 1980 e usa tecnologia do tipo VVER (reator nuclear de água pressurizada). Segundo o engenheiro Dagoberto Lorenzetti, especialista em energia nuclear, o sistema é parecido com a tecnologia utilizada nas usinas de Angra, no Brasil.
“A água nesse tipo de reator é, ao mesmo tempo, elemento moderador e fluido refrigerante", afirmou.
Isso significa que, como um elemento moderador, a água é capaz de reduzir para níveis adequados a energia dos nêutrons que são emitidos em cada fissão nuclear de urânio 235. Isso faz com que esses nêutrons gerem novas reações nucleares, criando uma reação em cadeia e produzindo energia.
Essa energia aquece um outro sistema hidráulico. Nele, a água se transforma em vapor e movimenta uma turbina que gera eletricidade.
Além disso, a água também é usada para resfriar os reatores e uma série de piscinas onde é colocado o combustível nuclear descartado. Todo esse sistema de resfriamento funciona a partir de bombas alimentadas por energia elétrica.
Cenário de desastre
Segundo um relatório da ONG Greenpeace divulgado em março deste ano, em um cenário hipotético, os combates podem destruir os cabos elétricos que trazem energia de outras fontes para dentro da usina nuclear. É essa energia que sustenta o funcionamento das bombas de água da usina.
Após a divulgação do relatório, três das quatro linhas que alimentam a usina foram avariadas por bombardeios.
Assim, se a energia externa for completamente cortada, todo o sistema de bombas de água da usina passaria a operar de forma emergencial, com eletricidade fornecida por geradores a diesel que existem dentro do complexo.
Na hipótese de que um grupo desses geradores falhe e não seja substituído rapidamente, existe a possibilidade de superaquecimento de todo o sistema.
Mesmo antes da guerra, parte desses geradores a diesel já apresentaram problemas devido à falta de peças e manutenção, segundo uma investigação de 2020 feita pela agência reguladora ucraniana.
Para agravar o cenário, muitos técnicos e funcionários da usina envolvidos no processo de resposta à emergência podem ter dificuldade de chegar ao local - devido aos combates e a restrições impostas pelas tropas russas. Isso poderia atrasar a resposta à emergência.
Nos reatores, com a vaporização parcial ou a secagem completa da água, a reação nuclear em cadeia se extinguiria e os equipamentos se desligariam automaticamente. Só que, mesmo desligados, tanto os reatores quanto as piscinas de combustível usado ainda precisam de refrigeração - para retirar o calor gerado pelo decaimento dos produtos de fissão nuclear.
No cenário levantado pelo estudo, se a refrigeração parar por completo, há uma chance de fusão (meltdown) de um ou mais reatores nucleares.
“Não teríamos uma catástrofe da dimensão de Chernobyl (1986), mas mesmo assim poderia ocorrer um acidente de graves consequências. Esta sequência de eventos é possível, mas pouco provável’, avaliou Lorenzetti.
Outra possibilidade, com um pouco mais de chances de ocorrer, é um incêndio nas piscinas de material nuclear usado, por falta de água. Esse evento poderia causar o vazamento de material radioativo na atmosfera, mesmo que a estrutura de proteção do reator não tenha sido comprometida.
Ou seja, a possibilidade de um acidente nuclear em Zaporizhzhia depende da ocorrência de uma série de fatores sucessivos e não de um evento único. Porém, o nível de estresse a que os funcionários ucranianos da planta estão submetidos, sob o controle dos russos, pode facilitar a ocorrência de acidentes.
A organização Greenpeace também apontou a possibilidade de alagamento e consequente falha nos sistemas de refrigeração da usina caso diques de contenção do rio Dnipro, nas proximidades, sejam danificados por fogo de artilharia.
O relatório alertou ainda para um cenário de acidente nuclear de proporções menores, no qual um disparo de arma pesada poderia levar à destruição de parte dos 160 tonéis de concreto que armazenam combustível nuclear usado (de menor teor radioativo) em um pátio da usina.
Diplomacia e energia
A concretização de um acidente nuclear em Zaporizhzhia não seria positiva nem para a Ucrânia, nem para a Rússia - mesmo para fins de propaganda de guerra. Até agora, a persistência dos combates na região parece ser motivada pela crença, especialmente dos russos, de que a estrutura da usina vai suportar eventuais erros de cálculo em operações militares.
O governo ucraniano vem acusando Moscou de querer redirecionar a produção de energia da usina de Zaporizhzhia para o território ocupado. A Rússia nega essa possibilidade. Mas, se ela acontecer, poderia criar um cenário de escassez de energia na Ucrânia, devido à importância da usina.
Em tese, o país poderia ser ajudado por vizinhos, pois sua rede elétrica foi conectada à da União Europeia no início da guerra, exatamente para mitigar esse tipo de risco. Mas a própria Europa corre o risco de escassez elétrica se a Rússia interromper o fornecimento de gás natural - que é usado para alimentar muitas usinas elétricas no continente.
Moscou comunicou na sexta-feira (19) que vai interromper o fornecimento por três dias para supostos trabalhos de manutenção no gasoduto Nord Stream 1.
O secretário geral da ONU, António Guterres, defendeu na semana passada, com apoio do governo ucraniano, a criação de uma zona desmilitarizada em Enerhodar. Mas a proposta foi rejeitada por Putin.
Por outro lado, em conversa com o presidente francês Emmanuel Macron, o russo disse que concordaria com a entrada na usina de uma delegação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A visita está prevista para setembro e será liderada pelo chefe do órgão, Rafael Grossi.
Ele havia afirmado que qualquer nova escalada de violência na região relacionada aos seis reatores de Zaporizhzhia “pode levar a um acidente nuclear severo com potenciais consequências graves para a saúde humana e o meio ambiente na Ucrânia e em outros locais”.
A ONU já conseguiu costurar um acordo para retomar a exportação de grãos na Ucrânia e facilitar o escoamento da produção russa. A ideia era diminuir a possibilidade de uma crise mundial de alimentos.
Agora, Guterres diz acreditar que, com negociações de bastidores, será possível chegar a um acordo para impedir um desastre nuclear que pode afetar grande parte da Europa e até mesmo da Rússia.