Tropas do Kremlin ergueram em onze dias todo um complexo de trincheiras em Popasna, retaguarda russa de Bakhmut - a principal frente de batalha no leste da Ucrânia -, segundo uma análise de dados de satélite da empresa privada Planet Labs divulgados pelo jornal americano New York Times.
Essa parece ser uma tendência na guerra da Ucrânia. Moscou recrutou desde setembro 318 mil novos combatentes, mas apenas pouco mais de 70 mil já estão combatendo. Enquanto esse novo contingente é treinado e transportado para o campo de batalha, os russos têm adotado uma posição defensiva.
Eles já perderam cerca de metade do território conquistado na invasão de 24 de fevereiro, segundo analistas ocidentais. Tentam agora evitar que a contraofensiva ucraniana iniciada em setembro os expulse para além das fronteiras.
Em paralelo, o presidente russo, Vladimir Putin, parece ter admitido pela primeira vez que sua operação na Ucrânia não é uma blitzkrieg - guerra rápida, com ênfase nas manobras militares - , mas sim um conflito longo. A análise teria ocorrido, segundo agências de notícias, em uma reunião de Putin com o chamado conselho de direitos humanos da Rússia, há cerca de dez dias.
O ministro da Defesa ucraniano, Oleksyi Resnikov, afirmou que no grande comboio russo que tentou tomar a capital Kyiv, no norte do país, entre fevereiro e março, os russos teriam levado fardas de gala. Seu objetivo era desfilar em poucos dias na avenida Khreshchatyk, a principal da cidade.
Isso não aconteceu. Kyiv foi transformada em uma grande fortaleza. Havia trincheiras em cada esquina, defesas antiaéreas, artilharia e até membros da população armados esperando os russos ombro a ombro com os soldados profissionais.
As tropas russas ocuparam mais de 150 pequenas cidades e vilarejos próximos a Kyiv. Lá, colunas de blindados russos, destinadas a executar a blitzkrieg do Kremlin, eram frequentemente surpreendidas por patrulhas ucranianas e da legião internacional. Os carros de combate eram destruídos com foguetes antitanque - como o consagrado Javelin - ou bombardeios de drones.
Em pouco mais de um mês de guerra, os russos começavam a se retirar dos arredores da capital e de toda uma faixa de terra na fronteira norte do país, que ia praticamente até a província (oblast) de Kharkiv, no nordeste.
Em julho, o presidente Volodymyr Zelensky anunciou uma contraofensiva e as forças ucranianas passaram a atacar no sul, em direção a Kherson - a única capital provincial que havia sido tomada pelos russos na invasão deste ano.
O Kremlin enviou ao menos 30 mil soldados para a região sul. Porém, o ataque principal ucraniano foi no nordeste, e a província de Kharkiv foi completamente liberada em uma ofensiva relâmpago em setembro.
Os russos haviam estabelecido seu quartel-general para todas as operações no leste do país, na cidade de Izyum. Ela foi praticamente cercada e os russos bateram em retirada no primeiro dia de outubro.
Estive em Izyum recentemente e vi equipes de técnicos ainda recolhendo munições deixadas pelos russos e investigando a presença de minas. A retirada russa foi desorganizada. Muito equipamento militar foi deixado para trás.
Mas o fato de ter sido uma retirada não significa que foi pacífica. Vi prédios de apartamentos literalmente partidos ao meio por bombardeios, indústrias despedaçadas que foram usadas como abrigo de tropas, pontes dinamitadas e vilarejos vizinhos completamente arrasados. Havia blindados incinerados por toda parte.
Moscou parece ter decidido que esse tipo de retirada não se repetiria na guerra da Ucrânia. Grandes complexos de trincheiras e fortificações foram então preparados para a defesa da capital de Kherson, no sul.
Mas, da mesma forma que ocorrera em Kharkiv, os russos sofreram uma derrota avassaladora e tiveram que abandonar posições. Kherson foi reconquistada em 11 de novembro.
Quando estive lá, três dias após a libertação, vi vilas arrasadas, muitos campos minados em volta da cidade e complexos de trincheiras abandonados pelos russos.
Isso coloca em dúvida a efetividade dessas linhas de defesa. Se não há soldados para protegê-las, são apenas buracos no campo.
A Ucrânia tem hoje um efetivo de soldados praticamente três vezes maior que o dos russos no campo de batalha. Por isso a necessidade de Moscou acionar sua “mobilização parcial” em setembro.
Em paralelo, os ucranianos estão sendo muito bem armados pelo Ocidente, com lançadores de foguetes e mísseis que podem atingir o inimigo a uma distância cada vez maior.
Segundo a análise de imagens de satélite feita pelo New York Times, vastos complexos de trincheiras estão sendo preparados na parte da província de Kherson ainda controlada pela Rússia, a leste do rio Dnipro, que praticamente divide o país ao meio.
O objetivo aparente é que as tropas ucranianas não sejam capazes de avançar sobre a península da Crimeia, conquistada pela Rússia em 2014.
Em Donbas, no leste, as tropas russas tentam tomar a cidade de Bakhmut para ter acesso por rodovias às principais cidades do norte da província de Donetsk. O sul da província é controlado por Moscou desde 2014. Na retaguarda, fazem fortificações para onde podem recuar no caso de contra-ataque.
Os russos usam tratores militares criados na década de 1960 (BTM-3) para cavar em média 800 metros de trincheiras por hora. As imagens de satélite mostraram também abrigos para atiradores, fossos antitanque (valas cavadas no solo que dificultam a movimentação de carros de combate) e “dentes de dragão”, obstáculos de concreto também destinados a retardar o avanço dos tanques.
A lógica dessas defesas é fazer o inimigo levar mais tempo para se deslocar e assim ficar mais exposto a disparos.
Em resumo, o objetivo do Kremlin parece ser ganhar tempo no campo de batalha. Isso não só para levar mais soldados para a guerra.
No campo político, Moscou espera minar o apoio dos países da OTAN (aliança militar ocidental) à Ucrânia. A grande quantidade de armas, equipamentos militares e recursos financeiros que vêm sendo garantidos a Kyiv permitiram ao país virar o jogo no campo de batalha.
Mas a Rússia não foi derrotada. A esperança de Moscou é que a crise energética agravada pelas sanções ao gás russo faça com que governos europeus sejam pressionados a retirar o apoio aos ucranianos. Empresas privadas estão quebrando e cidadãos protestando contra os preços da energia. Assim, o Kremlin sinaliza com o gás barato caso os europeus abandonem a Ucrânia.
Por ora, não é isso que vem acontecendo. Nos últimos meses, governo após governo ocidental reiterou ou até aumentou o apoio a Kyiv. Sucessivos premiês e ministros da defesa de diversas nações foram à capital ucraniana para mostrar comprometimento. Nos dias em que cartas-bombas foram enviadas à embaixada da Ucrânia e órgãos do governo espanhol, a ministra da defesa de Madri, Margarita Robles, dizia em uma entrevista da qual participei em Odesa: “Isso não vai abalar nosso apoio à Ucrânia”.
Além disso, as sanções a Moscou estão aumentando ao invés de diminuir.
No campo da informação, o Kremlin tem direcionado sua propaganda para políticos conservadores dos Estados Unidos, com o objetivo de causar divisão no país. Putin tenta se associar artificialmente a bandeiras como defesa da família e combate aos movimentos LGBT. Tudo propaganda, pois o Kremlin está muito mais interessado em submeter os países vizinhos do que defender valores familiares.
Para prejudicar a economia ucraniana, a Rússia está há mais de dois meses bombardeando a infraestrutura elétrica. O porto de Odesa chegou a ser paralisado por falta de eletricidade. Constatei nesse período a dificuldade dos comerciantes e da indústria em manter suas atividades.
A população civil acaba sendo a mais prejudicada. Sem luz, muitos sistemas de aquecimento das casas não estão funcionando. O aquecimento na Ucrânia é central - usinas distribuem vapor para as casas - ou individual a gás. Mesmo os sistemas a gás precisam de eletricidade para funcionar.
O resultado é que milhões de ucranianos vão enfrentar o pior inverno de suas vidas. A Organização Mundial da Saúde já alertou para o risco de milhares morrerem de frio.
Depois de uma viagem pela região de Donbas, rumo para o oeste da Ucrânia. As cidades aqui já não estão cheias de barricadas como estavam no início da invasão. Os preços dos produtos e dos serviços parecem mais estabilizados. Mas os blecautes e os alarmes de ataque aéreo não deixam esquecer que se trata de um país em guerra.
Após mais de dois meses de cobertura jornalística, pego um ônibus para a Polônia. O veículo está cheio de mulheres e crianças. Lyudmyla Hrybchuk é de Ternopol, uma cidade no interior da Ucrânia. Lá não há usina elétrica e os habitantes dependem da rede nacional, já gravemente afetada pelos bombardeios russos.
“Tivemos duas semanas que foram muito difíceis, só tinha luz duas ou três horas por dia”, disse. Ela trabalha em uma editora de livros escolares e decidiu deixar a Ucrânia neste inverno. Viajava para a casa da filha, em Portugal, quando a encontrei.
“No passado, antes da guerra, nós falávamos para as pessoas nos outros países sobre a ameaça que a Rússia representava, mas achavam que estávamos exagerando. Agora todo o mundo está vendo o que está acontecendo aqui. Estamos combatendo também essa propaganda de que Rússia e Ucrânia são uma coisa só. Nós somos muito diferentes, o mundo precisa saber”, disse.
Deixo a Ucrânia pela segunda vez com um pesar no coração, pelo futuro dessas pessoas.
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