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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Guerra na Europa

Ucrânia: visitando Bakhmut, a frente leste de batalha

Prédio bombardeado em Bakhmut: cidade no Donbas é atualmente o principal objetivo militar da Rússia na Ucrânia (Foto: Luis Kawaguti)

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A estrada para Bakhmut passa pelos campos de trigo de Donbas, em uma planície sem fim que lembra as cores amarela e azul da bandeira ucraniana. Aliás, essa é a origem do símbolo, segundo se fala por aqui: as plantações e o céu. Sinto uma pancada na lataria da Land Cruiser e penso que algo se soltou no porta-malas. Meu amigo Kostya está dirigindo em alta velocidade. “Isso me preocupa”, diz ele. “Se eu mandar descer, corra para longe do carro.”

Pancadas fracas e secas na lataria e agora também nos vidros do carro começam a se repetir com frequência cada vez maior. Percebo que elas são provocadas pelas explosões das granadas de artilharia disparadas à distância em Bakhmut, a principal frente de batalha da guerra na Ucrânia. As ondas de choque reverberam pelos campos de uma maneira que não achei que fosse possível.

Lembro-me imediatamente do dia 14 de abril deste ano. Estava em uma vila na frente de batalha de Zaporizhzia, no sul, no mesmo carro, em companhia do jornalista ucraniano Konstantin Kuzhelniy, o Kostya, e do famoso correspondente de guerra da rádio espanhola RNE, Fran Sevilla. Naquela tarde, a explosão de uma granada de artilharia a menos de dez metros de nós destruiu as janelas e perfurou a lataria do veículo em diversos pontos. Descemos do carro e ficamos sob bombardeio perto de um grupo de soldados. Agradeço por nenhum de nós ter se ferido, mas não sei daqueles soldados até hoje.

Mas, no caminho de Bakhmut, a sensação não era de medo. Ao menos eu sabia o que esperar em caso de ataque. Aliás, o medo sempre está presente na cobertura jornalística dos conflitos. Primeiro, há o medo da decisão: eu vou ou não vou? Não dá para pensar muito, ou a decisão acaba sendo não ir. É melhor simplesmente começar a caminhar.

Mas quando a cobertura começa de fato, você começa a ver as coisas com naturalidade. O som praticamente ininterrupto das granadas de artilharia explodindo ou passando assobiando sobre nossas cabeças vira um zumbido disforme, que acaba fazendo parte do dia a dia. Não há o pensamento: “E se uma cair aqui?”. Ao ouvir o som do assobio da bomba, é só deitar no chão e não pensar.

Você também deixa de achar estranho o fato de todo o tráfego na rodovia ser de blindados, ambulâncias e caminhões repletos de tropas, combustível ou suprimentos.

Kostya acelera muito até sairmos do campo aberto e entrarmos na cidade. São 9 horas da manhã do dia 5 de dezembro, um bom horário para entrar - os bombardeios normalmente se intensificam ao cair da noite, por volta de 16 horas. Depois dessa hora, é melhor não estar na cidade sem acesso a um porão ou trincheira.

Há pouquíssimas pessoas na rua. A maioria faz fila em frente a portas de prédios onde está sendo distribuída ajuda humanitária - comida e água. Elas depois caminham para suas casas com pequenas sacolas. Algumas correm.

Paramos o carro em frente ao complexo esportivo da cidade. Há um ginásio com quadra e pista de atletismo. O teto está todo perfurado por estilhaços e bombas. Em uma das paredes, há um rombo de uns 15 metros de diâmetro. Dá para ver através dele um campo de futebol do lado de fora. O gramado está cheio de estilhaços, concreto e cadeiras arrebentadas da arquibancada - que foram lançados lá provavelmente com a explosão do mesmo foguete que fez o rombo na parede do ginásio. Há muito vidro e pedaços de parede de alvenaria espalhados pelo chão.

Foto: Luis Kawaguti
Rastros da guerra em Bakhmut, incluindo um rombo no centro esportivo da cidade. Foto: Luis Kawaguti

Membros do exército ucraniano se aproximam e querem saber o que estamos fazendo. Eles autorizam que continuemos nosso trabalho, mas dizem que não podemos avançar até a zona zero, que fica a menos de um quilômetro de distância - onde os exércitos da Ucrânia e da Rússia se enfrentam diretamente. Mas estamos tão perto que já dá para distinguir o barulho do fogo de artilharia do som das metralhadoras pesadas disparando.

Avançamos mais um pouco, até uma zona onde só se vê prédios incinerados e destroçados, além de crateras de mais de cinco metros de profundidade, abertas pela artilharia pesada. Mas não quero repetir a experiência de Zaporizhzia, quando Fran, Kostya e eu ficamos uma hora sob bombardeio direto, abrigados entre a Land Cruiser e uma pequena casa. Por isso, decidimos acatar o “pedido” dos soldados e voltamos para o centro da cidade para procurar os moradores.

Passamos pelo mercado central completamente destruído. Barracas de comércio arrebentadas, lojas reduzidas a escombros e muito lixo e vidro pelo chão. Não há uma janela inteira.

No caminho para o centro da cidade, relativamente mais seguro, passamos por barreiras antitanque feitas com barras de ferro soldadas num formato de x - chamado por aqui de ouriços. Encontramos mais prédios parcialmente destruídos ou incendiados, fios da rede elétrica espalhados pelas ruas quase desertas e cheias de escombros.

Bakhmut é atualmente o principal objetivo militar dos russos na Ucrânia. As tropas do Kremlin estão avançando nesta direção desde abril, quando foram expulsas da região de Kyiv, no norte do país. No meio do ano, o exército de Moscou tomou as cidades irmãs de Severodonetsk e Lysychansk, completando a conquista de Luhansk e iniciando a ofensiva sobre o norte da província (oblast) de Donetsk.

Os ucranianos se retiraram então para Bakhmut, uma cidade sem grande importância política, mas que fica na estrada que liga Lysychansk a Kramatorsk, uma das maiores cidades do norte de Donetsk. Para acabar de conquistar a província, os russos têm que passar por lá.

Juntas, as províncias de Luhansk e Donetsk formam a região conhecida como Donbas - a mais industrializada e rica em recursos minerais da Ucrânia. Aqui ficam siderúrgicas, termoelétricas, mineradoras e jazidas de gás natural. Esse gás, se fosse explorado, em teoria poderia fazer a Ucrânia competir com a Rússia como grande fornecedor de gás para a Europa.

Foi aqui que em 2014 o Kremlin organizou rebeldes separatistas que criaram as autoproclamadas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk. Foi naquele ano que começou a guerra na Ucrânia. Mas até 24 de fevereiro deste ano, as tropas russas não tinham interferido direta e oficialmente. Por isso é comum dizermos que a guerra começou em fevereiro deste ano.

Hoje os russos controlam praticamente a totalidade de Luhansk e a parte sul de Donetsk, inclusive a capital de mesmo nome. A Rússia declarou em setembro ter anexado ambas as províncias após a realização de referendos - que não foram reconhecidos pela comunidade internacional.

A Rússia conseguiu avançar muito na região devido à superioridade da sua artilharia. Os combates em Donbas lembram algumas características da Primeira Guerra: combate de trincheiras e grandes bombardeios quase que indiscriminados de artilharia. Em Bakhmut, a batalha se estende por mais de quatro meses.

Mas a Ucrânia recebeu muitas armas de alta precisão enviadas pelos países da OTAN, a aliança militar ocidental. Em paralelo, graças a um sistema marcial de recrutamento, as tropas ucranianas chegaram a 700 mil - ou seja, 500 mil a mais que o contingente utilizado pelos russos no início da invasão em fevereiro. O Pentágono calcula que ambos os lados tiveram cerca de 100 mil mortos ou feridos cada.

Esses fatores possibilitaram que Kyiv iniciasse uma grande contraofensiva em setembro, que libertou praticamente toda a província de Kharkiv, no nordeste do país, e Kherson, no sul, a única capital de província que havia sido tomada por Moscou desde 24 de fevereiro.

Em Kherson, cerca de 50 mil soldados ucranianos se preparavam para sitiar a cidade, quando a Rússia decidiu retirar do local entre 20 mil e 30 mil combatentes em 11 de novembro.

Tanto russos quanto ucranianos então redirecionaram suas tropas para Donetsk. Por isso, hoje é lá que os combates são mais intensos.

No centro de Bakhmut, Kostya e eu encontramos Alexandra Mikhalna, de 86 anos. Ela havia acabando de receber pão e carne enlatada de uma organização não governamental. A temperatura na região era de cerca de -10ºC e nevascas esporádicas tinham deixado algumas pilhas de neve em locais esporádicos das ruas.

“Os meus vizinhos criaram um ponto de aquecimento coletivo. Todos vão para lá de noite e eu comecei a ir também. Para ajudar, entrei no sistema de revezamento da limpeza do chão”, disse a idosa.

Ela nos contou que já morou nos Estados Unidos e ainda trabalha fazendo arte - quadros e camisas bordadas. Apesar de seus familiares terem até servido no exército soviético e saber falar apenas russo, Alexandra é uma grande crítica da política do Kremlin. Ela diz que os discursos de que todos os moradores de Donbas querem ser “libertados” pela Rússia é uma grande mentira. Segundo ela, há partidários de Moscou, mas a grande maioria quer a liberdade, prefere que a região permaneça na Ucrânia.

Ela mostra uma placa que fez com uma foto do presidente russo Vladimir Putin oferecendo um brinde com um copo de champanhe. Abaixo da foto, lê-se em russo: “Aos idiotas”. Segundo ela, aos idiotas que acreditaram no discurso de Moscou de que está protegendo cidadãos russos ao invadir a Ucrânia. Ela conta que até chegou a ser mal interpretada durante uma manifestação na cidade: “Algumas pessoas não entenderam a ironia”.

Na entrada de casa, noto que a idosa acumulou uma pequena pilha de lascas de lenha. Ela não tem condições de carregar galhos pesados, por isso fez uma pequena pilha de ripas de madeira.

Perguntei como ela utilizava a lenha e me mostrou que havia dois tijolos sobre seu fogão, sujos com cinza. “Não tem mais gás na cidade. É perigoso sair na rua, por isso é assim que eu cozinho”, disse. A luz, ela mostrou, vem apenas de uma lamparina alimentada por óleo vegetal. Mesmo que houvesse eletricidade, não há internet e telefone na cidade, ou seja, não há comunicação civil.

Apesar de todas essas dificuldades, a senhora mantém a esperança e se recusa a abandonar sua cidade e seus vizinhos. Ela mora só.

Mas as tropas da Rússia estão cada vez mais perto de sua casa.

Kostya corre até o carro e volta com uma sacola de comida. Alexandra sorri e pede para ele acender sua lamparina. Ela reza e nos abençoa. Nos despedimos. Quando Kostya acelera pela estrada deixando Bakhmut, ouvimos explosões mais intensas que o normal. Uma coluna de fumaça se ergue sobre a cidade. Torço para que essa explosão não tenha sido perto da casa de Alexandra.

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