Adam Smith considerava a saga portuguesa da navegação oceânica como “a maior descoberta da humanidade”. Fazendo isso deixava de lado uma invenção contemporânea, aquela da prensa de Gutemberg, igualmente revolucionária. No tempo anterior a ela a confecção de um livro tinha um tempo longo: um bom monge copista levava muitos anos para completar um único exemplar da Bíblia. A leitura seguia este ritmo: reservada quase que só aos monges (e à alta realeza a partir do século 13), era mais um exercício de reflexão em meio a um cotidiano de orações que uma aventura intelectual de acumuladores de conhecimento.
Com a prensa, a escala de produção passou de um livro em vários anos para milhares de livros em poucos dias. O preço caiu ao nível do poder de compra de artesãos ou remediados. O número de leitores explodiu. Surgiram os primeiros best sellers: a Bíblia, acima de todos – mas a descrição das maravilhas do novo continente feitas por Americo Vespuccio rendeu vendas de 15 mil exemplares de “Novus Mundus”, apenas na primeira década do século 16.
A possibilidade de que leigos pudessem ler eles mesmos a Bíblia e avaliar seu valor teológico sem a supervisão do clero gerou uma novidade. Naqueles tempos este conhecimento equivalia ao de cursos de Teologia, História, Lógica e Ética somados, transformando o leitor em potencial juiz do mundo – um “Doutor em Cânones”, como se nomeavam os então formados nesta matéria nas raras universidades.
Só isso já bastava para deitar por terra a exclusividade monástica em assuntos teológicos. É necessário ter este quadro em mente para entender aquilo que pretendia o calvinista Jean de Léry, membro do primeiro grupo protestante a pisar em solo da América. Ele não dependia da tradição para fazer suas análises. Cada vez que conversava com um tupinambá ele enquadrava o que ouvia nos conhecimentos advindos da leitura da Bíblia.
Em primeiro lugar estava a Teologia: ele vinha como pregoeiro da religião cristã reformada, portanto como alguém que via o verdadeiro caminho na exegese das escrituras – e estava disposto a combater o que seria uma falsa religião cristã, o catolicismo que não exprimiria o verdadeiro sentido do livro sagrado.
Ele esperava que seus interlocutores tupinambás fossem capazes de, ouvindo suas explicações, se converterem a seu credo. Esta adesão seria essencial para determinar os julgamentos nos outros campos do conhecimento. Como ela não veio, o julgamento sobre este quesito foi negativo:
“Embora seja aceita universalmente a sentença de Cícero de que não há povo, por mais bruto, bárbaro ou selvagem que não tenha ideia da existência de Deus, quando considero os tupinambás vejo-me embraçado em lhe dar razão. Pois além de não terem conhecimento algum do verdadeiro Deus não adoram qualquer divindade terrestre ou celeste (…) [e] não têm nenhum ritual nem lugar determinado para a prática de serviços religiosos”.
Vinha então a segunda matéria: lendo a Bíblia não apenas como livro de revelação, mas também como fonte da real História da humanidade, a negativa do conhecimento do verdadeiro Deus funcionava como pista para a origem genealógica dos tupinambá:
“É evidente que descendem de um dos três filhos de Noé, mas acho difícil saber de qual, baseando-me nas Santas Escrituras e nos doutores profanos. (…) Não há base para que sejam filhos de Jafé. Dizer que são oriundos de Sem, pai da geração bendita dos judeus, não me parece lógico. (…) Parecem-me mais provável que descendam de Cam”.
Dadas tais características, é julgada a Lógica, ou seja, a capacidade de empregar a Razão:
“Em verdade estes selvagens pouco diferem dos brutos”.
Somando tudo, a conclusão é um julgamento em matéria Ética, uma avaliação da capacidade moral dos observados:
“Reputo certo descender esta pobre gente da raça maldita de Adão. E não concluo, como os Epicuristas, que não existe Deus, porém, ao contrário, de que há grande diferença entre pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à cegueira de seus sentidos”.
Este julgamento foi provavelmente o primeiro feito por um protestante depois de conviver com os nativos nus da América. E sobreviveu quase intacto por um século, para reaparecer num momento conturbado. As possibilidades maiores da leitura da Bíblia não geraram exatamente um clima de concórdia entre os cristãos beneficiados por elas.
A realidade histórica mais conturbada com o novo tempo foi a inglesa. Ali a reforma começou a partir do alto, com o rei Henrique VIII rompendo com o papado para se tornar chefe do Estado e da Igreja Anglicana. Nem por isso conseguiu a adesão dos calvinistas, que não encontraram bases nas Escrituras para justificar as pretensões reais de comandar a Igreja. Também os católicos queriam fazer tudo voltar atrás – especialmente quando um deles subia ao trono. As guerras foram contínuas e sangrentas, causando dificuldades foram assim sumariadas por Thomas Hobbes:
“Deveria haver um homem ou uma assembleia a fim de que Nosso Senhor (agora no céu) falasse por seu intermédio; este homem ou assembleia deveria falar por sua pessoa perante toda a cristandade, ou diversos homens e diversas pessoas deveriam fazê-lo perante diversas partes da cristandade. O papa deveria exercer o poder real sob o Cristo universalmente, e as assembleias dos pastores faze-lo nos Estados particulares (quando as Escrituras só o permitem aos soberanos civis). Esta representação é tão apaixonadamente disputada que faz desaparecer a luz da natureza, causando uma escuridão tão grande na compreensão dos homens que estes já não conseguem enxergar aquele a quem prometeram obediência”.
A frase foi publicada em 1651, num livro intitulado “Leviatã”. Como fiel anglicano que era, Hobbes procurou o argumento possível a favor da fusão das figuras do monarca e do chefe da Igreja. Fez isso tentando anular completamente a justificativa da tradição sagrada, tanto para o poder temporal como o espiritual. Sua argumentação começava com um julgamento muito semelhante ao de Jean de Léry:
“Quando não existe um poder comum capaz de manter os homens numa atitude de respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma guerra de todos contra todos. (…) Alguém pode pensar que não existiu um tempo ou condição de guerra semelhante; entretanto há lugares em que o modo de vida é esse. Os povos selvagens de vários lugares da América, com exceção de pequenos grupos cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem um governo geral e vivem, em nossos dias, na forma embrutecida acima referida”.
Mas aqui o julgamento como “selvagens” ou “brutos” não tem mais a função de uma avaliação teológica, como era no caso de Léry. Agora define um tempo primevo da humanidade, um tempo no qual não haveriam nem a Razão nem a Moral. Um tempo definido como Estado de Natureza – ao modo do pensamento de João Calvino, para quem a natureza também havia sido condenada pelo pecado original, sendo o ambiente dos pecadores e dos horrores da carne.
Esta definição negativa funciona para contrastar com outra, positiva:
“Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua que a um homem qualquer ou uma qualquer assembleia de homens seja atribuído, pela maioria, o poder de representar a pessoa de todos eles, todos sem exceção, tanto os que votaram nele quanto os que não votaram, devendo autorizar todos os atos e decisões desse homem ou dessa assembleia de homens como se fossem seus próprios atos, a fim de poderem conviver pacificamente. Todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido, mediante o consentimento do povo reunido, derivam desta instituição do Estado”.
As consequências dessa transferência de poder seriam totais: o ato era irrevogável, o poder transferido era absoluto, apenas a força que o soberano detinha a partir daí garantiria paz, progresso e moralidade.
O pacto social nascia como mito de fundação de uma renovada vida política. Era meio caminho andado para justificar a nova posição do rei da Inglaterra como um chefe de Estado que não deve seu poder a Deus nem o papado, mas apenas aos contratantes originais. Faltava ainda aquela de chefe da religião reformada. A argumentação a favor desta ideia começa com a extensão do corte entre Estado de Natureza e Estado civil, definindo o que seria um Reino de Deus:
“Não são súditos do Reino de Deus os corpos inanimados e as criaturas irracionais, que não entendem seus preceitos, nem os ateus. (…) Aqueles que acreditam haver um Deus que governa o mundo, que estabeleceu preceitos e propôs recompensas e punições para a humanidade, são súditos de Deus; todos os demais são considerados seus inimigos˜.
Por isso um soberano cristão governa seus súditos naturais pela força e seus súditos cristãos tanto pela obediência à lei civil como pelo comando a ele delegado enquanto cristão do que é certo e errado em matéria religiosa:
“Certamente Deus é o soberano de todos os soberanos, portanto, quando fala a qualquer súdito, deve ser obedecido seja o que for que qualquer potentado ordene em sentido contrário. O problema não está na obediência a Deus, mas em quando e no que Deus disse, e isso, pelos súditos que não receberam revelação sobrenatural, só pode ser conhecido pela razão natural que os levou a obedecer a autoridade de seus Estados, isto é, seus legítimos soberanos, a fim de conseguir a paz e a justiça. De acordo com essa obrigação, só posso reconhecer como Sagradas Escrituras, entre os livros do Antigo Testamento, aqueles que a autoridade da Igreja da Inglaterra ordenou que assim fossem reconhecidos”.
A argumentação do Contrato Social faria furor nos séculos seguintes – mas não chegou a beneficiar o pioneiro. “Leviatã” foi lançado justamente no pequeno intervalo em que a monarquia havia sido derrubada na Inglaterra pela decapitação de um monarca – e o puritano Oliver Cromwell governava como ditador e forcejava pela ideia contrária do domínio do reconhecimento das escrituras canônicas: reservar o direito de dizer o que é certo e errado em matéria religiosa, retirado do papado, apenas para os pastores calvinistas.
Neste ambiente adverso a obra, cuja segunda e maior parte é dedicada aos fundamentos teológicos de um Estado cristão, foi recebida como produto de um “materialista ateu” – fama que acompanharia Hobbes até sua morte. Apesar disso, uma parte dela foi aceita amplamente na Inglaterra: aquela que transformava o julgamento simplesmente teológico de Jean de Léry em duas coisas que não era originalmente.
Em primeiro lugar, a suposta selvageria passava a funcionar como um marco de ruptura: sociedades sem pactos seriam “primitivas”. Como escreveu Frank Lestringant em “Le Huguenot et le Sauvage”, criou-se uma “separação de dois mundos e duas humanidades. Uma selvagem, desnuda e condenada à perdição; a outra, cristã, vestida e confiante na salvação˜.
Da separação conceitual à separação política e econômica foi um passo pequeno, assim explicado por Betty Wood em “The Origin of American Slavery”:
“Os puritanos argumentavam que os nativos haviam recebido as terras de Deus, mas seriam incapazes de ‘ter noção correta das finalidades para as quais esta terra foi criada’. Não teriam introduzido nelas um sistema econômico agrícola como o europeu, e igualmente pecado por não introduzirem direitos de propriedade. Por ambas as razões, insistiam os puritanos, tinham perdido o direito à propriedade que ocupavam’.”
Assim o julgamento inicial de Jean de Léry acabou sendo o fundante de uma interpretação teológica, uma teoria política e uma prática política– aquela de enquadrar os nativos como condenados sem direitos e inimigos do Estado cristão. Este tratamento posteriormente foi adotado como política nacional dos Estados Unidos: os nativos foram considerados membros de outras nações e nunca como parte da população civil.
O enquadramento brasileiro começou de uma forma extraordinariamente semelhante de enquadramento pela Bíblia. Quatro anos antes de Jean de Léry fazer suas observações, em 1553, um homem que nunca o encontrou em vida mudou-se para a vila de Santo André e se instalou na taba de Tibiriçá graças aos bons ofícios de seu sogro, João Ramalho.
O padre jesuíta Manuel da Nóbrega seguiu exatamente o mesmo roteiro de enquadramento teológico que seria mais tarde empregado pelo calvinista no Rio de Janeiro. Começou pela Teologia, o conhecimento de Deus, e chegou à mesma conclusão do estudante francês:
“Como não sabem que coisa é crer e adorar, não podem entender a pregação do Evangelho, pois ela se funda em fazer crer e adorar um Deus, e só este servir; como este gentio não adora nem crê nada, tudo o que lhe dizeis se fica nada”.
Também no que se refere à História a conclusão foi a mesma:
“Creio serem descendentes de Cam, e por isso ficam nus e outras mais misérias”.
A diferença dos julgamentos aparecia na análise da capacidade de empregar a Razão:
“Toda esta gente, uma e outra, naquilo em que se cria, tem uma mesma alma e um mesmo entendimento”.
Esta pequena diferença fundou julgamento sobre Moral diverso da condenação eterna ao estado animal. Ao invés da condenação à eterna cegueira dos sentidos, o nativo poderia ser levado ao caminho da salvação, desde que passasse por um tratamento rigoroso:
“Metido na forja, o fogo torna o ferro mais parecido com o fogo que com o ferro; assim todas as almas sem graça e caridade de Deus são ferro frio e sem proveito, mas, quanto mais se esquenta o fogo, tanto mais lhe fazeis o que quereis”.
Esta esperança de forjar uma alma cristã fundava a conclusão do “Diálogo sobre a Conversão dos Gentios”, que termina com a seguinte proposta:
“O gentio se deve sujeitar a fazê-lo viver como criaturas que são, racionais, fazendo-lhe guardar a lei natural. (…) A lei que lhe hão de dar é defender-lhes de comer carne humana e guerrear sem licença do governador; fazer-lhes ter uma só mulher e vestirem-se; depois de tornados cristãos, tirar-lhes os feiticeiros; mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazer-lhes viver quietos e sem mudar para outras partes; terem terras repartidas que lhes bastem e com padres da Companhia para os doutrinarem”.
Esta avaliação acabou fundando um enquadramento teológico segundo o qual os nativos convertidos seriam parte da humanidade racional e, portanto, capazes de serem forjados para o cristianismo. Também fundou um enquadramento institucional: a partir de 1570 os nativos brasileiros passíveis de conversão tiveram a propriedade da terra garantida na forma do aldeamento – e foram ligados aos jesuítas, designados como seus guias no caminho da conversão, pelo instituto da tutela.
Assim se criou o estatuto do “índio manso”, aquele enquadrado como subalterno na sociedade colonial. Inversamente, criou-se também aquele do “índio bravio”, que recebeu um tratamento em todo semelhante ao dos puritanos: condenado e sem direitos – mas parte potencial da comunidade e da vida civil, pois objetos passíveis de conversão.
A fonte das interpretações do calvinista Jean de Léry e do jesuíta Manoel da Nóbrega foi exatamente a mesma: um roteiro de inquirição montado a partir da Bíblia. Mas o mesmo roteiro montado sobre o mesmo livro gerou dois julgamentos, duas conceituações institucionais, duas políticas de governo bastante diferentes. Os destinos dessas análises roteirizadas também foram diversos.
No caso brasileiro, a concepção original do padre Manuel da Nóbrega continua fazendo parte das legislações brasileiras: o instituto da tutela funciona ainda hoje como fundamento tanto para o direito como para a inclusão social – e até mesmo para a demarcação das atuais reservas indígenas. O roteiro teve aplicação apenas local.
Já a avaliação de Jean de Léry acabou servindo de base para a definição de um corte radical que separaria as culturas dos nativos num universo definido como “primitivo”, “animal” ou “bruto” e noutro que seria civilizado. Mais ainda, este corte colocaria no plano inferior o conceito de “natureza”.
Além disso acabou sendo incorporada como fundamento a uma ideia nova para justificar a vida política: aquela de um contrato fundador, capaz de servir como alternativa para a tradição ocidental, fosse essa dinástica ou divina. A ideia do contrato foi sendo aceita por muitos formuladores – até encontrar um capaz de inverter os termos.