Foto: Evaristo Sá / AFP| Foto:

A cerimônia de diplomação de Jair Bolsonaro como presidente da república foi mais um dos muitos rituais que vão marcando sua passagem de sua condição de simples cidadão para aquela de autoridade máxima da República Federativa do Brasil.

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A diplomação muitos passos previstos em lei para regular o modo pelo qual a vontade soberana do povo, expressa na votação recebida no ritual máximo da eleição, vai sendo progressivamente transformada em comando sobre o governo – o intermediário que, na teoria democrática, transforma a vontade popular em realidade, segundo a lei.

O próximo ritual previsto nas leis é a cerimônia da posse, que tem duplo significado. Do lado prático, significa a assunção do comando efetivo sobre o governo. Pelo lado simbólico, este é o momento no qual cessam as expectativas sobre o futuro que nortearam a eleição e começa aquele do julgamento prático, da avaliação da capacidade do governante eleito realmente cumprir as expectativas que foram levantadas no momento da campanha.

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As leis preveem uma série de rituais para este novo momento. Para começar, o eleito tem um prazo garantido para cumprir suas promessas antes de ser novamente julgado pelo soberano popular: seu mandato dura quatro anos.

Este prazo regula também o destino daqueles que foram derrotados na eleição. Sabendo que um novo julgamento só ocorrerá ao fim do mandato, organizam-se como oposição, cobrando o cumprimento das expectativas levantadas e pregando suas alternativas próprias para o momento da próxima eleição.

Com tais rituais a situação da soberania popular no dia da eleição é como que congelada por quatro anos. Neste congelamento o presidente da república concentra todo o poder de executar. Pelo mesmo congelamento, o Parlamento passa a funcionar com representantes eleitos tanto para apoiar o presidente da república como aqueles que receberam mandato popular legítimo de partidos que se opõem às ideias que levaram o presidente ao poder.

Este congelamento das proporções das expectativas eleitorais no dia da eleição é essencial para que o presidente possa exercer seu poder ao longo do mandato. E isto é assim porque o congelamento garante uma proteção essencial de todos os representantes eleitos contra as mudanças de humor da soberania popular durante o intervalo ritual entre eleições – algo tão estrutural no sistema democrático como as próprias eleições.

O jogo garantido por este congelamento passa a ser outro. Durante a campanha eleitoral, promete-se de acordo com o que se imagina serem as demandas essenciais dos eleitores. Do dia da posse em diante, passa a acontecer a disputa regrada em torno da avaliação do eleitor soberano sobre a boa execução das promessas.

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A divisão de poderes própria da democracia faz com que esta disputa seja efetivamente restrita aos representantes eleitos – presidente da república e parlamentares – e ao tempo do mandato. Entre a posse dos eleitos e a eleição seguinte, apenas os representantes tomam as decisões efetivas. Neste longo intervalo, a vontade popular é conhecida apenas pela aferição dos índices de popularidade realizada por institutos de pesquisa.

Este é o mecanismo da chamada democracia representativa.

O leitor constante desta coluna terá visto uma série de argumentos em torno da crise mundial pela qual passa este sistema. E quem notou a relevância destes argumentos poderá associar a eles a frase dita por Jair Bolsonaro em seu discurso de diplomação:

Senhoras e senhores, vivenciamos um novo tempo. As eleições de outubro revelaram uma realidade distinta das práticas do passado. O poder popular não precisa mais de intermediação, as novas tecnologias permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes.”

Este discurso que associa novas tecnologias à dispensa dos intermediários e uma promessa de ligação direta e instantânea entre a vontade do eleitor e o representante eleito, à custa da eliminação da intermediação não é exatamente uma jabuticaba, uma particularidade local do eleito brasileiro. O pensamento foi expresso de maneira muito semelhante por uma figura estrangeira muito próxima, de modo que vale a pena detalhar.

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No dia 29 de outubro, o dia seguinte da vitória de Jair Bolsonaro, a “Folha de S. Paulo” publicou uma entrevista com Steve Bannon. Ele contou sua ajuda para a campanha de maneira quase casual:

“Eu fiquei muito bem impressionado com Eduardo Bolsonaro e seus assessores. Temos a mesma perspectiva em relação a economia, estabilidade, lei e ordem. Informalmente nos mantivemos em contato e ele têm um grupo de brasileiros expatriados trabalhando nos EUA. Eles não precisaram de nenhuma ajuda, são muito sofisticados”.

O contato apresentado como afinidade e a ajuda informal quase desnecessária fazem parte de um padrão – mas este não é exatamente o que a linguagem casual indica. Nos últimos anos, eleição na qual Steve Bannon dá ajuda acaba com vitória para o apoiado. Não são vitórias apenas em eleições secundárias. O primeiro grande êxito foi na campanha do Brexit. O segundo, na de Donald Trump. Depois “deu ajuda” para as campanhas de Victor Orban, na Hungria e Matteo Salvini, na Itália. Bolsonaro foi outro vencedor.

Do alto desta experiência vitoriosa, Bannon definiu da seguinte forma a tendência mundial conservadora:

“A mídia tradicional ficou muito ligada às estruturas existentes e passou a reforçar esta estrutura tradicional de poder. A mídia tradicional é o partido de Davos, uma elite financeira, cultural, científica, corporativa. Os populistas nacionalistas dizem: não queremos isso, somos diferentes. Se não fosse pelo Facebook, o Twitter e outras mídias sociais teria sido cem vezes mais difícil ultrapassar a barreira do aparato de mídia”.

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Esta ultrapassagem teria criado um novo tipo de líder, no qual ele enquadra Bolsonaro:

“Vejo três principais pontos entre esses líderes: em situações muito confusas, conseguem identificar quais são os principais problemas e articular soluções; por serem autênticos, conseguem se conectar com o público de massa, particularmente com a classe trabalhadora e a classe média, de modo visceral; em terceiro lugar, eles têm carisma. De todos eles, Bolsonaro foi mais longe”.

Assim fica mais contextualizada a frase do futuro presidente brasileiro. O grande articulador e difusor da tecnologia da robotização de campanhas eleitorais e do envio de mensagens customizadas – muitas das quais deliberadamente falsificadoras de relatos sobre fatos – também vai além de seu emprego em campanhas eleitorais.

Ele acredita que toda uma série de instituições que define como tradicionais (neste caso com a imagem de uma elite que teria um centro de deliberação sintetizado na imagem de Davos) deixarão de ser intermediários relevantes na vida política mundial – substituídos com vantagem por líderes populistas capazes de um contato direto via redes sociais com os eleitores.

Esta é uma tese altamente vitoriosa no que se refere a eleições. De fato, as redes sociais estão se mostrando capazes de servir de veículo para mensagens robotizadas fortes o suficiente para criar o entusiasmo da ligação direta entre o que se apresenta como líder carismático e o eleitorado.

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Com base nessas vitórias se apresenta o desejo seguinte: eliminar da vida política os adversários apresentados como intermediários ineficientes, os rituais sem fim da “política tradicional” e recriar a figura do líder carismático como a figura eficiente para lidar com a política, porque está livre das peias da tradição.

Sem dúvida é um projeto relevante no que se refere ao manejo de expectativas em campanhas eleitorais. Mas é também um projeto que precisa ser ratificado pela prática do governo. Nesta ratificação também o mundo está experimentando – mas nem sempre de acordo com o figurino manipulado por Steve Bannon.

Entre aqueles que coloca como modelo da nova liderança populista está Nigel Farage, o mais radical dos líderes da campanha do Brexit. Ele teve seu momento de brilho em 2016, quando foi o maior defensor das vantagens para a glória nacional que o ato da separação da Grã-Bretanha da “teia de Davos” (para ficar na imagem de Bannon) europeia traria para seu país.

Esta foi a vontade da soberania popular no momento do pleito, com forte impulso das mensagens customizadas providenciadas via redes sociais. Em país de largo respeito à democracia, esta vontade soberana é o norte das negociações conduzidas pelo governo nacional com a União Europeia.

Mas até agora, por mais disposição das partes envolvidas, não há ainda qualquer alternativa para casar as expectativas levantadas no momento da campanha eleitoral e aprovadas pelo soberano popular com qualquer coisa que pareça – aos olhos dos representantes eleitos que debatem as alternativas no Parlamento – com algo que pareça remotamente a realização prática dos anseios de grandeza nacional.

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Não fossem os ritos tradicionais, a situação já teria explodido há algum tempo. A necessidade de um rito contratual com a União Europeia para selar a separação propiciou o tempo necessário para que o governo inglês fosse tateando em torno da melhor alternativa. A entrada em vigor de outro tempo ritual, aquele da aprovação parlamentar do acordo, trouxe enfim a questão fundamental: cumprir a determinação do soberano popular. Transformar a expectativa eleitoral em realidade.

Dois anos de negociação passados, está ficando claro. A promessa de grandeza nacional embutida na expectativa do eleitor soberano dificilmente vai se realizar. A “teia de Davos” não é apenas um conjunto de preceitos elitistas, mas também uma estrutura do mundo que permite o progresso através da globalização.

Imagine, caro leitor, se ritos e teias que asseguram o processamento razoável dos erros de avaliação da expectativa soberana fossem abolidos neste caso. A maioria da opinião foi e veio ao sabor das projeções econômicas saídas dos momentos de negociação. Caso houvesse a possibilidade de aferição direta desta vontade do eleitor ao longo do período, a cada onda o governo teria sido mudado. Caso houvesse um caminho real para o caso, já teria sido encontrado.

Se alguma expectativa pode ser medida neste momento, a mais clara é aquela dos mercados. O crescimento da economia inglesa já caiu, a perspectiva da separação derruba os mercados. A grandeza sonhada fica mais longe – mas ainda existe a oportunidade de saídas elegantes – todas elas garantidas pelos ritos, não pela consulta direta ao eleitor.

A situação lembra a conversa central de “Lincoln”, o grande filme de Steven Spielberg. Nela o presidente tenta convencer o republicano radical Thaddeus Stevenson a apoiar a abolição como primeiro passo para o cumprimento do ideal de igualdade racial defendido pelo interlocutor, empregando um argumento simbólico.

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Segundo Lincoln, os ideais funcionariam como a agulha da bússola, que apontam a direção a seguir. Mas não mostram obstáculos como pântanos, montanhas e rios. Sendo assim a sabedoria do governante eleito estaria não em tentar ir reto na direção indicada pela bússola, mas em conduzir pelos caminhos mais viáveis, sempre convencendo todos a seguirem contornando as dificuldades – até a próxima eleição.

Assim o presidente contornou um obstáculo, conquistou um voto, aprovou um projeto segundo os ritos. Romper com eles pode eventualmente alimentar a fantasia de que haverá mais eficiência no sistema, que as expectativas do eleitor soberano serão satisfeitas mais rapidamente. Tal suposição é realmente atraente – desde que se esqueça o milenar acúmulo da experiência prática de que erros de avaliação da soberania popular acontecem e boas promessas muitas vezes terminam em atoleiros pantanosos. Para livrar deles, e não para acelerar a marcha na direção da agulha, existem os ritos.

Neste sentido, a marcha do Brexit serve de guia – tanto quanto os resultados reais da política do Americas First. O chão também serve para avaliar a marcha. Não como expectativa levantada com euforia, mas como resultado real para a Nação. Tal confronto dificilmente pode ser eliminado com o afastamento do intermediário representativo, este dinossauro que incomoda. Não apenas em política, mas este já é outro assunto.