Nunca é demais começar pelo óbvio: Jair Bolsonaro foi eleito presidente da república. Inicia em janeiro o cumprimento de um mandato como indicado pela soberania popular. Mas o óbvio nem sempre é simples. Nelson Rodrigues, por exemplo, acreditava e repetia insistentemente: “Só os profetas enxergam o óbvio”.
Não me atrevo nem mesmo a pensar na hipótese de profetizar. Pessoa com paixão pela História, mal e mal consigo lidar com o passado. Com grande alívio, deixo a tarefa de vislumbrar o futuro para economistas e outros cultores da ciência e das regularidades de equações matemáticas.
Mesmo quando o assunto é passado, apesar de algumas confianças, tenho lá minhas dúvidas. Do lado positivo, sou daqueles que acreditam em medir para comparar; emprego evidências estatísticas quando se trata de analisar o passado econômico, por exemplo. Do lado da desconfiança, não consigo inferir nem mesmo traço de regra ou projetar qualquer espécie de validade futura para tais descobertas e medidas, que não a dos retratos do passado.
Então faço o que posso. Mesmo sem ter qualquer evidência de um sentido para a história, mesmo acreditando que eventuais constâncias percebidas na análise do passado não guardem qualquer relação significativa com eventos futuros – enfim, mesmo sendo daqueles que não acreditam que a História se repete ou mesmo que seja de alguma forma previsível – não consigo resistir a tentar organizar um pouco os dados do passado brasileiro. Espero que o exercício seja útil.
Jair Bolsonaro vai ser o 38º brasileiro a ocupar o cargo de Presidente da República – o regime republicano completará 130 anos em seu primeiro ano no cargo.
Este não é o único cargo mais alto de direção do país no período. Houve ditadores. O Marechal Deodoro da Fonseca chefiou o governo provisório entre novembro de 1889 e fevereiro de 1891; por vinte dias, em novembro de 1891, repetiu a ditadura após fechar o Congresso. Getúlio Vargas também governou duas vezes como ditador: entre 1930 e 1934 – e como chefe do Estado Novo, entre 1937 e 1945. Entre agosto e outubro de 1969 o país foi dirigido por uma Junta Militar formada pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Afora Getúlio Vargas, ditador por formação e vocação, além de civil, todas as ditaduras que não usaram o cargo de presidente em sua formalidade de um mandato sendo cumprido duraram períodos curtos, seja pelo fato de serem de transição ou pelo fracasso completo, como foi o caso do segundo período ditatorial do Marechal Deodoro.
Considerada a exceção, passemos ao que vem a ser a regra: o Brasil republicano governado por um presidente da república que cumpre um mandato, comanda durante um ciclo. Tal regra vale para 28 ciclos. Todos eles menos três (o de Washington Luiz em 1930; de Getúlio Vargas em 1934; de Costa e Silva, em 1969), de uma forma ou de outra, foram completados (as mágicas para isso serão tratadas adiante). Trata-se, portanto de norma razoavelmente firme, embora tal firmeza contenha importantes meandros.
O mais relevante destes meandros é a forma de escolha do presidente da república. Ao longo do regime, 17 pessoas foram escolhidas para chefiar o país em 20 ciclos de governo através do voto direto (Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff foram reeleitos). Esta é a forma dominante historicamente, mas há uma alternativa importante.
Em oito ocasiões o presidente da república foi eleito pelo Congresso Nacional. Vale a pena detalhar. O Marechal Deodoro, em 1891; Getúlio Vargas, em 1934 – ambos no ato da promulgação de constituições. Os cinco presidentes do regime militar a partir de 1964 e Tancredo Neves.
Esta combinação entre Congresso e voto direto já dá uma primeira aproximação de uma realidade: embora os ciclos de mandato sejam arraigados e funcionem como um alicerce poderoso na história republicana, nem sempre tem sido fácil manter o edifício de pé.
Acidentes de percurso de variada espécie aconteceram pelo caminho. O menos complicado de processar foi o da morte de um presidente eleito em exercício (Afonso Pena, em 1908) ou de eleitos antes de tomar posse (Rodrigues Alves, em 1919; Tancredo Neves, em 1985). Nos três casos tomaram posse os vices, embora no segundo tenha sido convocada nova eleição para o comandante no restante do ciclo (Epitácio Pessoa).
Embora com um grau de traumatismo maior, a convocação do sucessor legal aconteceu duas vezes em anos recentes, com os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff votados no Congresso, com os vices completando o mandato.
São cinco ciclos com, digamos, “acidentes nas regras”. Mas casos de maior gravidade não faltaram.
O primeiro presidente eleito, o Marechal Deodoro da Fonseca, como já se viu, deu um golpe, fechou o Congresso e se proclamou ditador. No dia seguinte o vice, Marechal Floriano Peixoto, começou a conspirar contra ele. Deu um contragolpe vinte dias depois, assumiu o poder com apoio do Congresso, governou quase o tempo todo com estado de sítio – apesar da fama de ditador governou na regra e entregou o cargo ao primeiro brasileiro eleito presidente, Prudente de Morais.
Alguns dos maiores testes para a estabilidade do sistema de ciclos foram providenciados por Getúlio Vargas. Para começar, derrubou um presidente no poder – foi o primeiro ciclo de governo que não se completou nas regras, quarenta e um anos depois da mudança de regime. Filosoficamente favorável à ditadura, estendeu como pôde a condição de chefe de um governo provisório que comandava por decreto e sem contraste. Só quando não podia mais aceitou um Congresso, uma constituição e um mandato regular. Mas empregou cada minuto deste mandato para especular com a volta da ditadura, o que conseguiu em 1937. Acabou derrubado e substituído pelo sucessor legal, o presidente do Supremo, em 1945.
Vargas voltou ao poder pelo voto cinco anos depois – e novamente o sistema de ciclos foi testado com seu suicídio. Em meio a marchas e contramarchas sucederam-se três herdeiros legais da presidência, até que finalmente o ciclo fosse completado com a posse de Juscelino Kubitschek.
Em termos de chacoalhadas, nenhum ciclo foi mais complicado que o inaugurado por Jânio Quadros em 1961. Depois de sua renúncia assumiu o presidente do Congresso; para dar posse ao vice, João Goulart, foi necessário passar uma emenda instituindo o parlamentarismo. O presidente convocou um plebiscito e retomou os poderes do presidencialismo. Foi derrubado por um golpe militar – mas uma serie de emendas constitucionais legalizou o marechal Castelo Branco como o presidente que completaria o mandato. Castelo mudou as regras estendendo seu mandato, de modo que este ciclo só acabou sete anos e quatro ocupantes depois de começado.
Nem mesmo ditaduras resolvem os problemas. O sucessor do segundo presidente militar, Costa e Silva, teve um derrame. Os militares impediram a posse de seu vice civil e assumiram como ditadores. E foi na condição de detentores de poderes absolutos que precisaram – vejam só – reabrir o Congresso para fazer voltar o sistema dos ciclos e mandatos. Nem eles conseguiram manter o Brasil funcionando sem esta regra.
Complicado? Então vamos refazer as contas. São 28 ciclos. Três interrompidos por ditaduras (duas de Getúlio Vargas, uma do trio militar). Outros oito tiveram problemas, dos quais cinco resolvidos com um sucessor legal e três com forte carpintaria e doses extras de criatividade – mas sempre voltando ao leito do ciclo, o que explica a diferença entre 28 ciclos e 37 presidentes.
Bem, esta é a história do cargo que Jair Bolsonaro vai assumir.
Para aqueles que gostam de derivar previsões da História, resta ainda um aspecto relevante.
Até agora nove militares ocuparam a presidência da República. Sete deles cumpriram seis ciclos por eleição pelo Congresso Nacional (Deodoro e Floriano dividiram o primeiro ciclo; cinco foram os presidentes ao longo do regime militar de 1964). Apenas dois foram eleitos pelo voto dos cidadãos: Hermes da Fonseca e Eurico Gaspar Dutra.
Mas há uma importante marca que os une: todos foram comandantes do Exército. Deste modo acumularam a autoridade do cargo de presidente da república com aquela de um dia terem a chefia da corporação militar.
Isso quer dizer muito numa instituição que vive fundamentalmente da hierarquia e das cadeias de comando sem quebras de disciplina nem discussões. Mesmo no exercício da presidência durante o regime militar, o general no cargo entregava a faixa e punha o pijama: o comando era da instituição, não da pessoa.
Assim, caro leitor, chegamos finalmente ao que se pode ligar entre um tempo longo e um momento como novidade.
Jair Bolsonaro será o terceiro militar a governar o Brasil como presidente eleito – mas o primeiro militar a presidir o Brasil sem ter chefiado o Exército.
Como faz parte das atribuições do cargo aquela de chefiar as Forças Armadas, no momento que colocar a faixa terá sido também promovido na profissão.
Desta vez não há precedente histórico para ajudar a pensar no caso, de modo que parece prudente avaliar outros aspectos desta eleição – o que já é também outro assunto.
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