A leitura do livro “Rupturas”, de Manuel Castells, é muito útil para entender o que está acontecendo no mundo – mas só muito indiretamente serve para que possamos incluir o Brasil neste movimento. A razão é simples: o país só é citado marginalmente.
Neste caso, é muito difícil atribuir a falta de conteúdo nacional a alguma espécie de desconhecimento do autor. Caso o leitor não tenha lido minhas crônicas anteriores, uma passada pelo arquivo pode revelar o quanto Castells está ligado ao país, o quanto sua formação e sua obra foram influenciadas por Ruth Cardoso.
Sendo assim, a quase total ausência de referências ao país deve ser entendida por razões que vão além das preferências ou conhecimentos pessoais. Propondo-se à difícil tarefa de mostrar as grandes tendências do mundo nas últimas décadas, Castells obrigou-se a tocar no essencial e deixar de lado o secundário – neste caso, o Brasil.
Não foi o único. Thomas Pikkety, ao resumir as grandes tendências da economia mundial nos séculos passados e projetar alguns problemas para o futuro em “O Capital no Século XXI” foi além: o Brasil não aparece nem mesmo de maneira marginal na formação do argumento.
Neste caso as razões foram outras. O autor tentou, mas não conseguiu os dados de que necessitava para poder analisar a situação contemporânea do Brasil, seu desempenho ao longo da segunda onda de globalização, iniciada nos anos 1970. Esta própria ausência de indicadores já é indicativa de um forte descompasso entre os cenários interno e o mundial de análise econômica.
Nesta realidade de insignificância, a única alternativa para um brasileiro saber como anda o país no mundo é o de construir ele mesmo as comparações. Fiz isso no caso de Pikkety, escrevendo um artigo intitulado “Intuições sobre a ausência do Brasil em O Capital no Século 21”, publicado em meu livro “Nem Céu nem Inferno”.
Resumo rapidamente o argumento, para o período que interessa. Entre 1890 e o final da década de 1970 a economia brasileira foi aquela que mais cresceu em todo o mundo. Basta isso para entender que certamente era um caso relevante no cenário mundial, capaz de despertar interesse de qualquer estudioso.
Claro, esta lembrança serve também para nós próprios brasileiros. Está aí registrada para que não se atribua o desempenho presente da economia nacional a um destino permanente, uma maldição religiosa, uma incapacidade definitiva. Desenvolvimento econômico não acontece por acaso; por isso, o excepcional desempenho da economia neste período só pode ser explicado quando se percebem onde estão nossos méritos.
Esta observação vale também para o que veio a seguir. Antes de entrar neste demérito, no entanto, é necessário conhecer minimamente os dados de desenvolvimento nos últimos 40 anos.
O primeiro desses dados diz respeito apenas ao país. Nos quarenta anos entre 1977 e 2016 (algo que inclui ainda um período do chamado milagre brasileiro), segundo os dados do IBGE, o país cresceu a uma média de 2,2% anuais. Este número positivo faz com que muita gente acredite que as coisas não foram tão ruins – até porque este crescimento aconteceu num período no qual os indicadores sociais conheceram uma melhora constante, especialmente a partir dos anos 90 do século passado.
Mas argumentos como esses se tornam bem menos significativos mesmo comparando apenas Brasil com Brasil. O crescimento entre as décadas de 1890 e 1970 foi muito próximo dos 6% anuais (a estimativa não é exata porque há muita discussão sobre a primeira década republicana).
Com isso fica claro: numa comparação entre períodos históricos brasileiros, há uma forte desaceleração do crescimento econômico no período da globalização, que grosso modo corresponde às últimas quatro décadas. Na análise temporal local, a conclusão evidente é de que aconteceu uma queda violenta no ritmo de crescimento.
Com tal evidência em mente é possível uma comparação com o mundo. No mesmo período de 1977-2016, segundo dados do FMI, o crescimento médio da economia mundial foi de 2,9% anuais. Apenas este número já permite uma primeira aproximação relativa: o país que, por oito décadas, conseguiu as melhores soluções de crescimento do planeta, rapidamente trocou de passo e ficou bem aquém da média do mundo no que se refere a crescimento. Pioramos em relação aos outros.
Se, na comparação com o passado, o registro é de queda, na comparação com o restante do mundo a conclusão é outra. O Brasil foi ficando atrasado, sendo passado para trás. A maior parte das nações conseguiu se aproveitar das oportunidades trazidas pela globalização enquanto o país foi se enredando.
Não se iluda, caro leitor: é muito difícil explicar uma mudança como esta a partir do mundo. A média dos países progrediu bem mais que o Brasil nas últimas décadas, e isso quer dizer que nosso país piorou em relação a eles. Assim, para entendermos a diferença vai ser preciso buscar o que não fizemos de certo. E, sendo o país cuja economia mais cresceu por tanto tempo, é bem mais razoável imaginar que os problemas das últimas décadas têm raízes locais, e não mundiais.
Um sólido ponto para partida na análise é o conhecimento daquilo que fez o mundo crescer na era da globalização. No período 1977-2016, segundo dados da OMC, a média anual foi de excepcionais 4,3% – bem acima da média de crescimento dos PIBs nacionais. Muito superior, portanto, à média de crescimento do Brasil.
Dizendo com poucas palavras diretas: o Brasil cresceu pouco porque não surfou a onda do comércio internacional. Manteve sua economia fechada. Assim se criou o cenário de atraso crônico e a mudança de sinal: a economia que mais cresceu no mundo durante oito décadas não aproveitou uma era de excepcional crescimento mundial – e crescimento puxado pelo comércio internacional. As nações que aproveitaram o momento o fizeram se conectando.
Este é o lado econômico da relação do Brasil com o mundo nas últimas décadas. O atraso é constante, os números apontam tendências uniformes de deterioração do papel nacional no longo prazo.
Tal quadro contrasta vivamente com aquele da condução política da nação. Na primeira metade da década de 1980 o regime político era o de uma ditadura militar que prezava uma economia fechada. O primeiro presidente civil foi um quadro egresso deste regime, mas apoiado no partido vindo da oposição. O primeiro presidente eleito, em 1989, seguiu uma linha econômica de abertura – que foi continuada por seu vice nacionalista e mantida pelo presidente socialdemocrata que veio em seguida. A partir de 2002, e por 14 anos, o país foi governado por um partido de esquerda.
De alguma forma ou de outra, todo o espectro político esteve no comando do governo nacional. Esta alternância no poder, que é uma boa notícia para a democracia, é má notícia quando se tem em vista o quadro de piora constante da economia em relação ao mundo. Nenhuma das administrações foi capaz de, ao longo de quase quatro décadas, reverter totalmente o quadro de queda (na comparação com o passado) ou atraso (na comparação com o restante do mundo), que foi se firmando como tendência de longo prazo.
Pior, a irrelevância crescente do Brasil nem é tema de preocupações na atual campanha eleitoral – algo que talvez apenas a ficção possa ajudar a explicar, numa próxima ocasião.