As urnas foram claras. Na eleição presidencial os dois candidatos que declaradamente exploram os extremos foram os escolhidos. À direita um militar assumidamente conservador, com seu subordinado liberal servindo para fixar matiz. À esquerda o porta-voz de um condenado em processo criminal, com um passado de administrador moderado. Todas as variantes ao centro foram pulverizadas nas urnas.
Estes são os fatos já passados, as bases sobre as quais se pode aplicar alguma espécie de consideração histórica – enquanto começa o momento de readequação das expectativas com as campanhas eleitorais do segundo turno.
Emprego uma imagem para associar a voz das urnas à história: a maioria dos eleitores aderiu a uma peculiar variante da retórica da Guerra Fria. Para entender melhor a variante, vale uma breve lembrança da estrada principal.
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Sete décadas atrás, ao longo da Segunda Guerra Mundial, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt foi adiante das muitas necessidades do presente no conflito: aproveitou a posição dominante de seu país para ir arrancando apoio entre os aliados para seu desenho institucional do mundo no pós-guerra: construir instituições globais para amortecer conflitos e impulsionar as relações entre países.
A lista dos frutos destes esforços é conhecida: Onu, Fmi, Gatt, Oit e outras tantas instituições mediadoras e indutoras foram pouco a pouco moldando a cena internacional até que tudo se ligou depressa na globalização.
Mas ainda no nascedouro dessas instituições o líder inglês Winston Churchill encarregou-se de uma contribuição peculiar. A Inglaterra entrara inicialmente no conflito por causa de seus aliados poloneses. Uma parte do exército do país foi transportada para o espaço britânico e lutou bravamente ao lado dos aliados.
Acontece que os acordos entre os vencedores para administrar os territórios que conquistassem em combate acabaram levando a que a Polônia ficasse na área de influência da União Soviética. Mesmo tendo participado da confecção dos acordos, Churchill tentou mudar a situação e manter a Polônia como uma democracia ligada ao ocidente, alegando um laço indissolúvel com os aliados do primeiro momento.
Quando percebeu que não teria sucesso, empregou a retórica que dominava tão bem. Num discurso proferido no dia 5 de março de 1946 empregou o termo “cortina de ferro” para definir uma divisão qualitativa no mundo de instituições globais que engatinhava.
A separação imagética radical entre capitalismo e socialismo logo estava denominando uma era inteira. Começava a chamada Guerra Fria, que logo foi muito adiante da retórica. Pactos militares (Otan e Pacto de Varsóvia) selaram alianças de força entre os países segundo o desenho da Cortina de Ferro, dando início a uma corrida que era armamentista, por um lado, de influência econômica ligada ao regime de governo do outro – mas, sobretudo, de organização de corações e mentes.
A base econômica, militar e política tornou-se também o alicerce de um sólido universo moral e retórico. Construiu-se todo um sistema de juízos, de julgamentos capazes de serem apresentados como norte para separar a decência da indecência, a virtude do vício. A retórica da Guerra Fria gerou noções que tornaram a disputa entre capitalismo e socialismo em luta entre o Bem e o Mal.
Tecnicamente falando, a tremenda eficácia do suporte retórico derivava de sua capacidade de permitir a criação do que Carl Jung definia como sizígias: pares opostos de símbolos ou valores. No caso da Guerra Fria a construção dos pares tinha ainda uma vantagem muito grande em relação ao modo mais normal de operação desta construção. Permitia formar conjuntos de preceitos morais simétricos e invertidos, dependendo do lado da Cortina de Ferro que se adotasse.
Em ambos os lados construíram-se discursos nos quais o sistema dominante era apresentado como fonte das virtudes e do Bem – e o inimigo do outro lado como o vício de o Mal. Apenas o sinal negativo e positivo era trocado, de acordo com o lado do autor do julgamento, o que dava uma forte universalidade ao conjunto.
A grande vantagem do esquema era a de possibilitar a todos os seres envolvidos, dos dois lados, travarem disputas de toda espécie com uma única base retórica – da literatura às campanhas políticas, sem esquecer os altares. Tal universalidade possibilitava que, num ou noutro polo, todos enquadrarem-se a si mesmos do lado do Bem – e aqueles do outro lado da Cortina de Ferro, seja geográfica ou já de posicionamento ideológico, como o Mal a ser evitado.
Assim todos viviam em situação de conforto moral. Viam o Bem dentro de si e projetavam inteiramente o Mal no outro. Arrancavam de si mesmos a força para superar os obstáculos, dar a vitória a seu lado e lutar pela vida. Todos buscavam o melhor para suas ideias.
O primeiro líder a deixar de lado este conjunto ideológico eficaz foi Mao Tsé Tung, em 1972. Contei a história da mudança da China há poucas semanas. Acrescento agora que o líder chinês foi seguido, na década de 1980, pelo soviético Mikhail Gorbatchev e sua Perestróika. Em pouco tempo a União Soviética promoveu desabamento total da base material sobre a qual se assentavam os juízos morais que separavam direita e esquerda quatro décadas atrás. O símbolo material da Guerra Fria, o Muro de Berlim, caiu em 1989. Dois anos depois havia apenas a Rússia como seu território de 1917 – e com uma economia de mercado sendo construída sobre os destroços.
Quando isso aconteceu o cenário institucional montado por Franklin Roosevelt estava maduro, multiplicado, positivo e operante. A nova base material única se fez com a revolução da informática, mais uma nova logística que transformou a produção industrial em operação planetária. O símbolo material da nova era é o celular, igual em qualquer país do mundo e centro de operação das redes sociais globais. Em termos institucionais é um mundo sem política nem economia como problemas. Mundo tocado por burocratas, executivos internacionais e desenvolvedores de tecnologia. Mundo duro, cuja regra é “Enquadre-se ou morra”.
A Guerra Fria, naquilo que tinha de base real, morreu. Bom para pessoas acostumadas à diversidade, às viagens internacionais, à tolerância. Melhor ainda para aquelas que têm o realismo econômico como norma, a paixão pelas inovações tecnológicas no sangue, o desprezo implacável para o que sobrar.
Mas essas características são especialmente complicadas para conservadores. Embora todos os humanos moldem sua atuação no mundo por valores separados pelo Bem e o Mal (as características listadas acima são o Bem para cultores do universalismo racional), os conservadores têm nesta separação um centro de identidade muito mais profundo. Um mundo em mutação constante lhes parece, na melhor das hipóteses, amoral – e quase sempre imoral.
Tateando no mundo pós-Guerra Fria, alguns conservadores foram encontrando as formas políticas para criar um universo menos agressivo às suas crenças. Acharam. Mas não deixa de ser curioso que as mais bem-sucedidas tentativas de recriar uma gestão baseada em outros valores que não os imperativos da realidade global tenham acontecido justamente nos dois países que estiveram no centro do desenho do mundo nos últimos setenta anos.
A primeira tentativa está em curso e tem data marcada para se tornar realidade: o Brexit. O ano de 2019 vai ser marcado pelo isolamento nacional da Grã-Bretanha, por decisão própria. Acompanho diariamente as discussões desde que a decisão foi tomada pelos eleitores soberanos do país – algo em si mesmo estranho ao mundo global. Explico: na base da campanha vencedora estava uma divisão radical: a adesão a valores nacionais conservadores – neste caso identificados com o passado glorioso, com o Brittania Rules – e a União Europeia, apresentada retoricamente como o perigo global que destrói a identidade nacional.
O diabo está sendo a transformação desta retórica nacionalista vendida como glorioso destino nacional para os eleitores em grandeza nacional real. O crescimento da economia já diminuiu. As contas da saída, mostradas inclusive pelo governo inglês, são claríssimas: quanto maior a ruptura, maior a queda da riqueza.
A maior esperança atual dos negociadores ingleses é a da piedade da União Europeia – mas é difícil imaginar que a piedade faça sentido para os integrados. Menos ainda, que o isolamento traga o sentimento de orgulho nacional que os ingleses buscavam para restaurar um ar de passado glorioso. Na última rodada de negociação a primeira-ministra inglesa já foi tratada como alguém de fora. Sentiu-se ultrajada, vocalizou o sentimento de que seu país merecia um tratamento à altura de suas grandes tradições. Como resposta, ouviu uma declaração ríspida dizendo que o tempo estava acabando. Claro, tudo pode ser retórica de negociação – mas os sinais não são os melhores.
O mesmo objetivo político de associar governo conservador a valores nacionais superiores foi vitorioso em espaço bem mais relevante e rege a política do America First, de Donald Trump. Neste caso a escala econômica é muito maior, a capacidade de agir segundo valores próprios da nação é imensamente mais relevante. Ainda assim, os resultados nem sempre são claros.
Pense num episódio recente, caro leitor: o presidente dos Estados Unidos, a nação mais rica da terra, aquela que se pensa como a primeira, começa um discurso na Onu fazendo referência a si mesmo e a seu país como os campeões do isolamento. Líderes do mundo inteiro, liberais e conservadores, inclusive, caem na risada. O ambiente global é implacável até com isso.
Mas não se pense que ambos os casos são de puro nacionalismo. No que se refere aos meios para obter maioria na soberania popular, as duas vertentes conservadoras inovam radicalmente no emprego da tecnologia. A vitória nas urnas foi obtida a partir do emprego maciço de tecnologia militar para mobilizar redes sociais. Os processos foram radicalmente além do cenário anterior, no qual militantes individuais, geralmente progressistas, moldavam a influência a seu gosto.
O elo que une ambas campanhas é uma empresa chamada Cambridge Analytica. Ela combinou pesquisas militares de comunicação de guerra (apelo a sentimentos primitivos combinados com a apresentação do inimigo externo como grande perigo) com acesso a perfis pessoais do Facebook, a partir dos quais essa tecnologia era aplicada a indivíduos, com disseminação programada de mensagens customizadas. Para quem quiser os detalhes, uma apresentação bastante completa de tudo pode ser encontrada, por exemplo, no jornal The Guardian.
Caso o leitor sinta algo a ver com a eleição brasileira, vale a pena agora examinar a variante local, a distinção que leva ao caso singular. A estratégia do conservadorismo inglês e norte-americano é baseada na criação de uma retórica de superioridade nacional como guardiã dos valores conservadores e do domínio político deles, seja do patriotismo isolacionista norte-americano ou do saudosismo imperialista inglês. O tempo mítico ao qual se quer voltar é o anterior à Guerra Fria, ao tempo que o modelo nacional supostamente moldava o mundo.
Na versão que recebeu forte apoio das urnas brasileiras o perigo não vem de fora. Não é o mundo global que ameaça os velhos valores que seriam a identidade da nação. Pelo contrário, nela o perigoso inimigo está dentro, é o velho outro da retórica da Guerra Fria, inteiramente abandonada nos dois casos precedentes. Mobiliza moralmente em torno de diferenças que faziam sentido mundial décadas atrás – mas das quais sobram apenas fragmentos paleológicos.
Em vez de unir a Nação contra o inimigo de fora, a retórica está sendo maciçamente empregada para dividir a Nação segundo as ideologias dominantes década atrás.
Não funcionaria se a esquerda local também não pensasse com a retórica da Guerra Fria. Como é também este seu molde, assistimos a uma campanha na qual as duas partes reproduziram o esquema retórico abandonado no mundo. Mais que isso, tal conjunto foi eficaz para ambos. PT e PSL não apenas levaram seus candidatos ao segundo turno como elegeram as duas maiores bancadas na Câmara Federal.
Claro, pode ser apenas retórica para o primeiro turno, instrumento para ser imediatamente abandonado em prol da sedução do eleitorado do centro – aquele que foi alijado pelos extremos. Isto é agora expectativa, assunto de futuro, assunto fora da alçada do historiador.
Mas não resisto a colocar esta incerteza em forma de indagação. Vamos ter de nos virar para descobrir como nos ligar ao mundo que veio depois da Guerra Fria, divididos e dominados ainda por sua retórica – apenas com capa de internet? É nóis contra nóis, mano?