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Inteligência Artificial, Aristóteles e Natal

Um pouco de imaginação, caro leitor. Vou passar o Natal em São João da Boa Vista, o que remete a uma história de meu bom amigo sanjoanense, Davi Arrigucci Jr., talvez o maior crítico literário brasileiro, além de muito capaz de dar uma vida mágica à sua cidade.

Boa parte de seus causos locais têm como personagem central a doce figura do Fersen Blasi. Conta o Davi que, depois de aposentado, este só saía de seu apartamento no edifício Gustav Mahler e de suas audições de música clássica para dar uma andada até a praça da matriz. Numa dessas andanças os dois teriam se encontrado, tomado um café e sentado num banco da praça.

A decoração natalina em torno da fonte (que na lembrança de muita gente continua sendo luminosa) e o olhar iluminado das crianças brincando atraíam a atenção de Davi enquanto os dois estavam em silêncio. Na hora em que se virou para comentar algo com o amigo, encontrou-o absorto com o movimento do primeiro caixa eletrônico de um banco, instalado há pouco na cidade – com olhar ainda mais maravilhado que aquele das crianças. Para Fersen, a traquitana e as pessoas que se movimentavam em seu interior se constituía, esta sim, em algo não apenas digno de ser observado com toda a atenção, mas também de assunto para uma afirmação grave:

— Ô, Davizinho. O que são as maravilhas da natureza…

A frase pegou, o amigo passou a repetir incessantemente a história das maravilhas do caixa eletrônico a todos com quem encontrava na cidade. Ouvi mais de uma vez e guardei. Um dia dei de cara com o seguinte trecho da Política, de Aristóteles:

“Um bem é um instrumento para assegurar a vida, a riqueza é um conjunto de tais instrumentos, um escravo é um bem vivo, um auxiliar que aciona outros instrumentos. Se cada instrumento pudesse executar por si mesmo missão dada pelas ordens de seu comandante ou percebendo antecipadamente o que lhe cumpre fazer, como era o caso das estátuas de Dédalo ou dos trípodes de Vulcano, que segundo Homero, “entram como autômatos nos combates dos deuses”; se a lançadeira tecesse sozinha o pano, se a paleta tirasse sozinha de uma cítara o som desejado, os arquitetos não mais precisariam de operários nem os mestres de escravos. Chama-se “instrumento” o que realiza o efeito, e “propriedade doméstica” o objeto que ele produz. O tear, por exemplo, e o torno, além do exercício que nos proporciona seu uso, fornecem-nos ainda pano e camas; ao passo que o pano e a cama que eles nos produzem se destinam apenas a nosso uso”.

É curioso o papel que os “caixas automáticos” desempenham neste argumento. Eles seriam instrumentos efetivos acima do alcance dos homens, mas existentes na esfera de deuses como Vulcano ou seres míticos como Dédalo. Entretanto chegavam ao homem pela capacidade de imaginação do poeta Homero, de modo que o filósofo Aristóteles podia aplicar a imagem para entender o ambiente já bastante humano da produção material. Trata-se de uma fantasia útil: ele emprega este fruto da imaginação para esclarecer um ponto essencial no que se refere ao sentido da produção econômica na sociedade.

As máquinas com inteligência artificial, puro fruto da fantasia, são apresentadas para mostrar, por contraste com as limitações humanas, certas condições que lhe pareciam inelutáveis nas relações reais de trabalho. Para viver como humano, para viver em sociedade, o homem organizaria certas relações essenciais destinadas a criar a produção de riqueza – e duas delas são apresentadas: a relação do arquiteto que organiza o trabalho dos operários e aquela do senhor que comanda o trabalho de seus escravos.

O trabalho assalariado dos operários e o trabalho compulsório dos escravos, de um lado; o comando técnico do arquiteto ou o comando despótico do senhor, por outro, seriam as formas assimétricas necessárias para a sociedade humana produtora – porque as máquinas inteligentes dos deuses não estavam disponíveis aos homens.

Nessas condições Aristóteles faz uma avaliação essencial: todo o arranjo do trabalho social envolve meios, que ele chama de instrumentos. Estes instrumentos são apenas intermediários para o verdadeiro fim, associado ao valor de uso dos produtos que eles geram – pano e camas, que o humano, ao fruir, dá sentido ao arranjo de trabalho necessário para cria-los.

Esta é uma distinção essencial em seu pensamento. Para começar, o valor de uso como fim e os instrumentos como meros meios justifica uma separação entre aquilo que é próprio e o que não é:

“Cada coisa que possuímos tem dois usos; porém, um é próprio e conforme a sua destinação, enquanto o outro é impróprio. Por exemplo, o uso próprio de um sapato é calçar; podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natureza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns mais, outros menos do que precisam, por este acaso as levaram à troca”.

O uso natural dos bens define a arte de acumular. Por tal arte ele entende o arranjo produtivo pelo qual um senhor comandando seus escravos vai conseguindo bens que formam a riqueza do conjunto família/escravos (óikos, no original grego). Já o arranjo do artesão (no exemplo acima, o arquiteto) com seus trabalhadores assalariados e o comércio empregariam a arte artificial do enriquecimento. Essas duas artes, sendo uma própria e outra imprópria, teriam valores morais opostos, uma sendo virtuosa e outra viciosa:

“Assim, das duas maneiras de riqueza, aquela que se obtém pela arte de acumular é indispensável e merece elogios; a segunda, em contrapartida, a riqueza que se obtém pela arte de enriquecer, merece censuras: nada recebe da natureza, mas tudo da convenção”.

A razão da divisão moral entre as formas de obter bens se devia ao fato de que uma delas tem limites na própria natureza, enquanto a outra alimenta-se de si mesma e tem como objetivo uma riqueza infinita – que nunca satisfaz:

“As pessoas cujo objetivo é enriquecer perseguem-no medindo-o pelos prazeres do corpo, de tal forma que, como esses parecem depender da posse de bens, todas suas energias se concentram nesta atividade. Como seus desejos e prazeres são excessivos, se não conseguem obtê-los tentam por quaisquer meios, usando cada uma de suas faculdades de maneira contrária à natureza. Tais pessoas transformam todas suas faculdades em meios de arranjar riqueza, na convicção de que é o fim a atingir”.

Esta passagem por Aristóteles ajuda a entender a profundidade do comentário do Fersen Blasi na praça de São João da Boa Vista. A fantasia da produção automática dos tempos anteriores a Cristo era agora a realidade cotidiana à disposição de qualquer observador. Tão normal que podia ser associada à natureza – e não a uma faculdade imoral contrária a ela.

Pois bem. Esta observação aconteceu num tempo no qual a automatização produtiva apenas engatinhava. Podia, por isso mesmo, merecer uma tirada de grande espírito. Mas o leitor poderá muito justamente perguntar o que acontece agora, quando autômatos inteligentes podem substituir todas as relações entre pessoas envolvidas nos arranjos sociais para produzir riqueza?

Do ponto de vista prático, estes arranjos já são hoje praticamente todos na variante empresário/trabalho pago em dinheiro, desde a abolição da escravidão no século 19. Mas, ainda como nos tempos do filósofo, tais arranjos ainda sustentam toda a moralidade da vida social no que se refere à economia.

Na base da argumentação moral está a noção de que capital e trabalho se juntam na produção, o primeiro recebendo na forma de lucro, o segundo como salário. Sabe-se que tal arranjo produz desigualdade, mas também que há um contraponto: o aumento da riqueza total é de tal ordem que beneficia os dois, de modo que a distribuição desigual seria virtuosa. Sendo assim, o arranjo traria uma vida social moralmente justificável como Bem Comum.

Mas não há como escapar da literalidade de Fersen Blasi: se as maravilhas da natureza são agora tais que os homens contam com aquilo que apenas os deuses tiveram na antiguidade, vão ter de enfrentar o problema de saber para que servem quando não precisam mais se unir para ganhar a vida com o suor do rosto – e não têm mais necessariamente a ver com as montanhas de mercadorias que autômatos acumulam sem saber para que espécie de troca entre humanos. Que fins haverá então na vida social de meios supostamente infinitos?

Ah, sim. O Natal. Nos tempos de Aristóteles havia, em todas as culturas setentrionais, uma festa para marcar o fim do sofrimento do sol – que perdia poderes para a noite – e o renascimento de sua força e luz. Uma vitória sobre a morte e uma redenção. Bom momento para refletir sobre ciclos, não?

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