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Júlio Mesquita Filho: a luta entre Rousseau e Freud

O mergulho no inferno foi agitado.

Em 1925, Júlio Mesquita Filho escrever “A Crise Nacional”. Tratava-se de um livro que refletia o otimismo de um jovem de 32 anos, educado na Suíça e formado no explosivo crescimento econômico de São Paulo no período. Traduzia o ambiente ao redor com a seguinte análise:

“A fortuna particular, até então apanágio exclusivo da classe aristocrática de latifundiários, passa a repartir-se equilibradamente entre a massa geral dos trabalhadores. (…) A independência econômica teve, como não poderia deixar de ter, repercussão na atitude das massas frente ao movimento político. Libertado da proteção governamental e do senhor do latifúndio, o indivíduo abandonou sua indiferença costumeira”.

A partir desta constatação de base o livro defende uma série de propostas para “a eclosão definitiva de novas energias nacionais”. Todas elas na linha da coincidência positiva entre maior crescimento econômico e maior autonomia dos cidadãos: voto secreto e criação de universidades seriam os próximos passos na direção da renovação.

Em 1926 foi fundado o Partido Democrático, cujo programa tinha fundamentos muito semelhantes. A partir de 1927, com a morte de Júlio Mesquita, o filho assumiu formalmente a direção de O Estado de S. Paulo. Entendia o cargo de modo peculiar. O livro que publicara funcionaria como uma tábua de valores explícita; os editoriais seriam a aplicação dos valores a casos empíricos da conjuntura. A combinação entre valores e prática geraria a necessária postura perante a opinião pública, capaz de orientar o leitor.

A crise de 1929 providenciou testes empíricos muito duros para os valores. O primeiro deles aconteceu com a avaliação do papel das crenças liberais na direção da economia. O jornal passou a criticar pesadamente a insistência do presidente Washington Luiz em lutar por uma paridade de câmbio fixa num momento em que os mercados de divisas davam todos os sinais possíveis de falência do modelo.

No ano seguinte o dilema foi ainda maior: apoiar a continuidade da democracia, apesar da política econômica que criticava, ou apoiar uma ruptura revolucionária para remover o problema?

Como o programa da Aliança Liberal, que passou a pregar a via revolucionária a partir do segundo semestre de 1930, tinha como ponto de propaganda maior o voto secreto defendido no livro, a opção acabou sendo pela revolução. Em outubro de 1930, o primeiro governo revolucionário de São Paulo tinha participação direta de dirigentes do jornal.

Bastou um ano e tanto do novo governo para Júlio Mesquita Filho se convencer de que o governo revolucionário não tinha exatamente vontade de convocar eleições. Com isso o dilema mudou: apoiar uma política econômica mais realista ou insistir na democracia?

A resposta viria a ser radical: Júlio Mesquita Filho foi um dos líderes da Revolução de 1932, colocando milhares de homens em armas para tentar repor em funcionamento a democracia. Foi derrotado nas armas e conheceu seu primeiro exílio.

Enquanto estava em Portugal o ministro da Fazenda Oswaldo Aranha completava o ciclo das pesadas mudanças para adaptar a economia do país ao ambiente de recessão mundial. Foi tão bem sucedido que o Brasil retomou o crescimento muito antes do restante do mundo. Assim o pressuposto econômico dos valores que ele defendia foi restaurado – e Getúlio Vargas encarregou-se de provocar um novo dilema.

Convocou eleições, entregou o governo de São Paulo de porteira fechada para Armando Salles de Oliveira – cunhado de Júlio Mesquita Filho – e deu anistia. O mundo parecia ter voltado ao normal, e o jornalista dedicou todo seu esforço na volta do exílio para fundar a Universidade de São Paulo, a parte substantiva de seu programa apresentado em 1925. O dilema se resolveu com perdão ao homem que o exilara.

Foram anos de progresso institucional tocados em ritmo de grande urgência no estado. Tudo foi mudado, da política tributária e fiscal até a criação da primeira secretaria de cultura. Armando Salles de Oliveira deixou o governo estadual para ser candidato a presidente da República em 1937. Seus discursos de campanha compõem uma das grandes versões da visão de liberalismo como uma combinação entre mercado e democracia, e tudo fundamentado na História do Brasil.

Mas o dilema real tornara-se outro. O nazismo ascendera na Alemanha pregando o fim da democracia como antídoto único para o socialismo – os mercados que aguentassem. Getúlio Vargas explorou o caminho criando cadáveres e enchendo cárceres de “perigosos comunistas” a partir de 1935 – e se tornou ditador.

Os dilemas de Júlio Mesquita Filho ganharam outra dramaticidade a partir daí. Não apenas foi exilado como o jornal que buscava refletir a opinião da sociedade foi estatizado a partir de uma pantomima da polícia – e se tornou disseminador da vontade ditatorial para uma sociedade pensada como inerte.

Exilado em Buenos Aires, sem dinheiro, assistiu à ascensão de Juan Domingo Perón na política local. De vez em quando encontrava-se com Jorge Amado, comunista de carteirinha e igualmente vítima do ditador. Num desses encontros recebeu a notícia de que o Partido Comunista apoiaria a ditadura Vargas que mantinha comunistas no cárcere. O argumento: a União Soviética era parte das nações aliadas e sua defesa estava acima dos problemas conjunturais dos comunistas brasileiros no cárcere.

Era um momento de paradoxos para lógico nenhum botar defeito. A casa desabou.

As primeiras cartas mandadas aos amigos com a revisão de seus valores essenciais causaram tanto furor quanto os primeiros argumentos de Jorge Amado transformando o ditador brasileiro em aliado do comunismo. Frente aos pedidos de seus amigos para manter sua posição, escreveu em 18 de fevereiro de 1942:

“Julgo-me dentro da mais pura lógica. Não só da história como das regras que presidem à evolução do espírito. Se não permaneço hirto em face do vertiginoso suceder de fatos é porque reclamo para mim aquele direito a que se refere Anatole France, que consiste na própria vida da inteligência: o direito de mudar de ideias, completando-as ou corrigindo-as conforme o progresso da vida”.

Mas acabou fazendo um compromisso. As novas ideias circularam entre os liberais no exílio, mas não se tornaram públicas. Apenas em 1947, derrubado Vargas, reinstaurada a democracia – e devolvida a propriedade do jornal, elas começam a aparecer. Havia agora um modelo negativo: Juan Domingo Perón se tornara caudilho na Argentina. Seria o pior de dois mundos. Começando pela economia:

“A economia argentina passou por uma mutação brusca. De liberal que era, desde seus primórdios, baseia-se agora nos mais ortodoxos princípios do totalitarismo de direita. Já não compadece a produção com o liberalismo a que deveu seus extraordinários frutos no século passado, Perón a submeteu a uma draconiana planificação, regulando não só a produção interna como a exportação”.

Na via política também teria havido uma inversão entre forma e conteúdo:

“Poder-se-ia objetar que não há como comparar o governo constitucional de Perón com a ditadura fascista de Mussolini. Perón foi legitimamente eleito, num pleito que no aspecto formal nada deixa a desejar. Não é menos verdade que lá estão a funcionar a Câmara e o Senado. Mas é exatamente nisso que reside a gravidade do caso argentino. As Câmaras funcionam regularmente. Entretanto, outra coisa não fazem que legalizar todos os atos do presidente. Não legislam no sentido político e constitucional do termo. Limitam-se em transformar em lei todas as veleidades que possam surgir no espírito do chefe do executivo”.

Esta a realidade nova que procurava analisar. Em 1948, numa conferência na Faculdade de Direito, finalmente tornou claro que a realidade nova exigia uma revisão completa de valores. Com 55 anos na época, foi direto sobre o custo da mudança:

“Pertenço a uma geração que conheceu o mundo tal qual era antes que desabasse sobre ele o cataclismo de 1914. Conheci, portanto, o período da história em que o liberalismo imperava sem contraste e o socialismo não assumia ainda o feitio agressivo, totalitário e predador que lhe imprimiria a vitória definitiva das tendências marxistas sobre as soluções profundamente humanas da escola francesa”.

Tudo isso alimentava a espécie de otimismo que manifestara em 1925:

“O espetáculo de ordem e precisão que nos ofereciam as sociedades europeias de então; as conquistas pacíficas que se sucediam no terreno social; os surpreendentes progressos realizados pela ciência e, graças a eles, a rápida expansão das indústrias e dos intercâmbios entre os povos, davam a todos a impressão de que a humanidade havia encontrado o caminho capaz de leva-la à solidariedade entre nações. Não admira, pois, que todos nós jurássemos sobre os postulados rousseaunianos e nos inclinássemos a ver em nossos semelhantes outros tantos homens de bem”.

Um gesto simbólico marcaria para ele a transformação:

“Trinta anos atrás o mundo aplaudira, fremido de entusiasmo, o gesto de Einstein preferindo a proscrição a colocar a assinatura no manifesto dos sábios alemães em apoio à política [de guerra] de Guilherme II. Hoje, a que é que assistimos? Vemos este mesmo Einstein convocar a fina flor da inteligência mundial para se isolarem no deserto do Arizona e só saírem dali de posse da bomba atômica! Assim a ciência, a ciência que fora a religião dos povos brancos, teria sua apoteose em Hiroshima”.

(nota: o leitor constante certamente poderá relembrar o mesmo drama, mas vivido por um marxista, na publicação que fiz aqui intitulada “O Canto da Sereia”).

O brilho explosivo da ciência a serviço da força tragou, mais que os valores, o próprio otimismo:

“Com quem está a razão, com Rousseau ou com Freud? Em outros termos: será na realidade o homem fundamentalmente bom, e à sociedade que se deve imputar sua perversão, ou é o judeu quem vê claro quando afirma sermos piores que as próprias feras, pois que, possuindo todos os instintos que as caracterizam, temos ainda sobre elas o privilégio de fazer deles o uso que nos apraz, mercê de nossa faculdade de distinguir as coisas?”

Esta nova interpretação do mundo não era fundada nos princípios, mas na mais dura das experiências:

“Nas prisões por onde perambulei; no exílio e quando dele voltei; por toda parte me perseguia o espectro de um mundo que fora meu e pelo qual havia dado o melhor de mim mesmo. A queda da ditadura, a recondução ao posto em que por mais de vinte anos tudo fizera para honrar a memória de meu pai e servir à minha terra, (…) nada, confesso, conseguia devolver a fé antiga em meus semelhantes, na minha gente e no mundo ao qual pertencemos. (…) Lutar para quê? Não era o homem aquele que afirmava Freud e a humanidade autora do que aí está?”.

Com a exclusão do Bem e do Mal, da esperança no futuro e da espiritualidade, Júlio Mesquita Filho apresentou sua nova definição de liberalismo:

“Ele repudia as afirmações categóricas. Limita-se a observar o curso natural dos acontecimentos para pautar, por eles, as ações. Assim, acreditará na nação do Estado, neste ou naquele setor das atividades humanas, segundo as circunstâncias e sempre que o determinismo dos fatos o aconselhar. O que não admite, o que repele como contrário à substância mesma do espírito que o inspirou é o apriorismo político”.

Morreu a utopia. Para seu lugar veio um estrito realismo. Mas, apesar de todas as dores, as lembranças do passado glorioso não se transformaram em programa para o futuro – o que nos remete aos tempos atuais.

 

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