O enquadramento teológico dos nativos da América mostrado na coluna anterior acabou dominando largamente as políticas efetivas dos diversos governos europeus que montaram colônias nas Américas. A avaliação negativa como selvagens pouco preparados para o cristianismo acabou praticamente soterrando a primeira impressão, a Visão do Paraíso.
A única atualização mais importante no século 17 foi o extraordinário conjunto de conhecimentos e imagens produzidas pela corte de Maurício de Nassau no período do domínio holandês do Recife. Foi um ato individual de um príncipe renascentista (mesmo nas colônias francesas, espanholas, inglesas ou até holandesas da América não aconteceu nada de parecido).
O material serviu de base para uma larga difusão de imagens de pessoas, animais, plantas e edifícios. De toda Europa vieram pesquisadores interessados nos originais e assim uma visão tanto realista como mais positiva que o julgamento teológico foi se disseminando entre estudiosos.
Apenas no século 18, no entanto, os povos da América voltariam a ter uma avaliação positiva – num caso que vale a pena ser esmiuçado. A onda de guerras religiosas no interior da cristandade havia esmaecido finalmente, mas deixado um rastro de feridas a serem curadas com novas soluções. E uma das soluções que foi sedimentando no rescaldo foi a de eliminar o quesito religião da arquitetura sobre governos.
Era uma mudança de porte. O julgamento teológico dos nativos da América seguia uma ordem que começava em Deus (a Teologia estava no centro), passava pelo enquadramento na História contada no livro sagrado e só então desaguava no uso da Razão e no estatuto moral dos julgados. A mesma ordem de roteiro era seguida por todos os pensadores políticos europeus naquele momento para avaliar qualquer governo.
A revolução aconteceu com um alargamento da trilha aberta por Thomas Hobbes em “Leviatã”: fundar as instituições num Contrato Social. Esta manobra, pensada inicialmente como um modo de contornar a tradição como fonte do poder monárquico foi ampliada. A partir do século 18 o modelo do contrato ganhou outro conteúdo: pensar no bom governo sem levar em conta nem a religião nem a tradição histórica.
Fazer isso significava nada mais nada menos que retirar da arquitetura do governo tanto o ato de se imiscuir nas crenças religiosas dos governados quanto a consideração com direitos adquiridos que se reiteravam pela tradição (por exemplo, o domínio de nobres sobre pessoas e terras).
A primeira exclusão tinha fontes históricas ocidentais. A filosofia grega entrou na matéria de governo a partir do momento em que passou a analisar a instituição sem levar em conta a religião – assunto considerado fundamental, mas não da alçada de filósofos ou governantes.
Já a segunda exclusão, aquela da tradição, era realmente revolucionária. Até a adoção da ideia do contrato, todos os analistas políticos faziam suas observações a partir da constatação geral e corriqueira de que os homens em sociedade tinham vidas e lugares desiguais. O cientista político Norberto Bobbio expõe as diferenças radicais entre os modelos, começando pelo modelo inicial de Aristóteles (que o Ocidente adotara como padrão teórico) e as mudanças trazidas por Hobbes:
“O estado natural, no modelo aristotélico, é um estado no qual as relações fundamentais são relações entre superior e inferior, e portanto são relações de desigualdade, como é o caso, precisamente, das relações entre senhores e escravos. No modelo jusnaturalista de Hobbes, o estado de natureza, sendo um estado de indivíduos isolados, que vivem fora de qualquer organização social, é um estado de liberdade e igualdade, ou de independência recíproca. É precisamente este estado que constitui a condição preliminar necessária da hipótese contratualista, já que o contrato pressupõe em seu surgimento sujeitos livres e iguais”.
Este momento de igualdade, como se viu, era fugaz na argumentação de Hobbes. O contrato servia justamente para banir o estado de natureza e transferir todo o poder civil para o soberano – e chefe religioso. Os desenvolvimentos no século 18 foram na direção de levar “sujeitos livres e iguais” ao estatuto de pressuposto racional de todo o modelo do que deveria ser um governo. Assim, juntamente com a retirada da religião da esfera do pensamento sobre o governo, aconteceu uma radical inversão no estatuto da igualdade. Até então era uma noção marginal – mesmo no texto de Hobbes.
Um dos grandes responsáveis pela mudança foi Jean Jaques Rousseau. E, sendo leitor de Montaigne, recuperou o que havia de essencial na análise deste sobre os rituais antropofágicos tupinambá. Com isso criou uma associação entre a vida dos povos da América e a virtude – e, inversamente, a vida ocidental como vício:
“A maioria de nossos males é obra nossa e teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado”.
O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado em 1755, continua com a produção de imagens que definem o Estado de Natureza de modo exatamente inverso ao de Hobbes, que o pensava como momento de guerra entre os homens:
“Desde que um homem sentiu necessidade do socorro do outro desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário, vastas florestas transformaram-se em campos cultivados nos quais logo se viram germinar a escravidão e a miséria crescer com as colheitas”.
Uma vez iniciado o processo, a desigualdade só faria crescer:
“Se seguirmos o processo da desigualdade em suas revoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; o segundo seria o estabelecimento da magistratura; o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de forte e de fraco pela segunda; o de senhor e escravo, que é o último grau da desigualdade até que novas revoluções destruam completamente o governo ou o aproximem de ser uma instituição legítima”.
O governo que poderia repor justiça na vida social seria delineado por Rousseau no livro Do contrato social, publicado em 1762. Ao contrário do Contrato Social imaginado por Hobbes, que significava a desistência da igualdade, o roteiro de um governo virtuoso seria outro, o de criar uma força de igualdade substantiva, capaz de repor a virtude perdida do estado de natureza. Esta força teria a finalidade de ser: “uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e, por meio da qual cada um, ao se unir a todos, somente obedeça a si mesmo e permaneça tão livre como antes”.
No corpo político assim criado, uma nova hierarquia seria estabelecida: “É necessário à força pública um agente que reúna e execute segundo as direções da vontade geral, que sirva à comunicação do Estado e do soberano, que faça, na vida pública, o que faz no homem a união da alma e corpo. Eis qual é, no Estado, a razão do governo, confundida inadequadamente com o soberano, do qual não é senão ministro. O que é então o governo? Um corpo intermediário estabelecido entre súditos e soberano para mútua correspondência, responsável pela execução das leis e manutenção da liberdade”.
Assim Rousseau renovou o tema do discurso do canibal que impressionou Montaigne a ponto de este colocá-lo no centro de seu ensaio: corpo e espírito unidos numa totalidade com a natureza, fundando a virtude da vida humana. Mas Rousseau, em vez de manter os limites do pensamento do século 16, apresenta o primeiro caso de pensamento positivo ocidental sobre a moralidade dos nativos da América como modelo universal, tão bom que deveria fundar as relações entre governantes e governados no Ocidente.
A virtude de um governo não mais estaria na capacidade dada pela divindade a um rei para determinar aquilo que competia a cada um numa sociedade na qual a natureza produziu e juntou homens desiguais, senhores e escravos. Estaria, isso sim, no fato de que a vontade geral, soma das vontades de todos os indivíduos nascidos livres e iguais, serve para pôr em comunicação muitos homens através do governo que escolhem para si e é exercido por seus representantes.
Pensando a partir do que lera sobre os índios brasileiros e ampliando a noção de liberdade inata dos seres humanos, Rousseau elaborou uma versão radical de um projeto acalentado por alguns pensadores da época: o de fundar um novo modo de governo, baseado na ideia de que a sociedade se governa a partir de um contrato entre homens livres e iguais, e não a partir da simples agregação de pessoas desiguais por natureza.
Liberdade e igualdade, segundo o modelo virtuoso do estado de natureza pensado a partir dos tupinambá por Montaigne, passam a ser os valores morais fundamentais da vida política no pensamento de Rousseau. Tomam o lugar de Deus nos julgamentos do século 16.
Este ato intelectual era o ponto de mudança crucial, que exigiria uma completa e radical alteração na teoria que presidia a organização dos governos ocidentais desde a Antiguidade.
Segundo a nova filosofia política, a igualdade fundamental entre os seres humanos estava no fato de serem todos dotados de razão – algo antes reservado a uma elite governante ou a teólogos excepcionais e profetas. Portanto, além de fundamento moral, esta igualdade deveria substituir a desigualdade natural entre humanos como princípio lógico organizador das leis.
As consequências dessa mudança seriam imensas. O indivíduo livre que se associa aos demais toma o lugar da natureza criadora de desigualdades como o derradeiro fundamento da vida social. A capacidade humana de empregar a razão, que se expressa coletivamente no contrato social, entraria no lugar da tradição como fundamento da ordem jurídica. Dessa radical mudança resulta também uma nova moralidade ou, para falar nos termos técnicos da política, uma nova definição de legitimidade. As únicas leis legítimas seriam as derivadas da razão, nunca as legadas pela tradição. E há outra decorrência necessária: só seriam válidas as leis aplicáveis a todos, sem exceções – e inválidos todos os privilégios e diferenças.
As consequências dessa mudança radical no modo de pensar foram imensas. As virtudes de ontem se tornavam os vícios de hoje. A mais relevante inversão de sentido moral estava relacionada à escravidão. Para Aristóteles, tal instituição era a evidência empírica fundamental que sustentava toda a construção de teoria política de uma sociedade que se fundava na desigualdade, de modo que ao bom governante caberia apenas manter tal diferença na lei.
Rousseau, o exato contrário de Aristóteles, dizia:
“Nulo é o direito da escravidão, não só por ser ilegítimo, mas por ser absurdo e nada significar. As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente”.
Nesta condenação da escravidão, há uma sobreposição de dois planos de oposição entre o modo aristotélico e o modo iluminista de conceber o bom governo. O princípio lógico da igualdade (fundada na capacidade de empregar a Razão de todo ser humano) impede o reconhecimento lógico do direito na escravidão, por ser contraditório com este – daí a classificação da escravidão como “absurda”.
Mas a igualdade também sustenta o sentido moral da política e das leis, pois é a fonte dos direitos do cidadão – e, nesse sentido, a escravidão é “ilegítima” perante o direito. No rigor do pensamento iluminista, portanto, uma filosofia política de tipo aristotélico era um contrassenso lógico, e o reconhecimento de privilégios de um homem sobre outro não passava de um ato imoral.
Estamos de tal forma acostumados com a frase “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” que simplesmente deixamos de lado o tamanho da mudança que ela trouxe. O ideal de um governo que serve aos cidadãos – e não os privilegiados que querem reiterar a desigualdade – está por trás de todo pensamento liberal que se preze. A noção de que a igualdade deve ser estendida a toda a vida social, especialmente a econômica, funda ainda projetos de futuro.
Mas a relação substantiva entre Homem e Natureza que Rousseau apresenta como a base moral de todo o edifício, aquela concebida pelos tupinambá, foi deixada de lado de novo por dois séculos – até ressurgir nos dias de hoje.