Os primeiros almoços com Luiz Haffers aconteceram num período da vida brasileira no qual a lógica do senso comum era tudo menos normalidade – a começar pela moeda. Em vez de ser referência de todos os preços, era ela mesma um preço sem nenhuma referência. Em tempos como esses apenas o humor capaz de considerar com liberdade os paradoxos ajudava na arte de sobreviver.
Os dois éramos capazes de passar horas nos divertindo com as aporias do momento, pois não restava outra forma de sermos realistas. Entre as coisas que não fariam sentido em situação normal nos encontros estavam nossas próprias trajetórias.
De meu lado, como resolvera escrever a história de Mauá em separado do contexto da teoria política do império, tinha não apenas o livro pela frente, mas também um doutorado. Neste, a questão central se deslocara para o debate sobre o poder pessoal do monarca, definido na Constituição de 1824 como Poder Moderador.
Tinha de ser assim. Havia acordo filosófico no debate econômico, já que os dois partidos professavam a mesma confiança nas ideias econômicas liberais de Adam Smith. Por isso, o fulcro da divergência entre eles surgiu na interpretação dos artigos que delimitavam o poder pessoal do monarca.
Os conservadores criavam interpretações defendendo o máximo de arbítrio e o mínimo de controle – chamavam este arranjo de ordem. Já os liberais defendiam o máximo de extensão para a soberania popular e, por isso, maiores restrições para o Poder Moderador. Foi assim até o surgimento, em 1870, da proposta republicana de simplesmente eliminar este poder das instituições legais.
O pano de fundo de minha análise acrescentava um dado que era então muito recente na pesquisa de história econômica: a constatação estatística de que o período imperial foi um daqueles de pior desempenho em toda a história do Brasil: uma economia estagnada, com crescimento ZERO da renda per capita em 70 anos, ao contrário dos períodos colonial e republicano (até o momento das conversas com Luiz Haffers), que foram de grande expansão.
Com isso perguntas paradoxais se tornava inevitáveis: se todos os políticos acreditavam piamente em Adam Smith e se diziam liberais, por que o país independente deu para trás? Pior ainda, por que rastejou justamente no momento em que as economias nas quais o capitalismo se implantava decolavam? Isso tinha a ver com o poder pessoal do monarca?
Por causa da natureza das perguntas, toda a estrutura analítica do doutorado (publicado no livro “A Nação Mercantilista”) segue a avaliação de paradoxos, a partir da própria escolha do título. Eram, para mim, a única maneira de explicar como o apreço às ideias liberais ia sustentando as escolhas reais dos conservadores que barravam o crescimento da economia de mercado.
O retrato deste paradoxo no campo da economia estava já nas disputas entre Mauá e, especialmente, o Visconde de Itaboraí. O líder conservador se dizia liberal porque defendia o laissez-faire, o livre comércio. Mas entendia que a espiral de crescimento do capitalismo equivalia a jogatina, que empresários como Mauá, que buscavam o lucro, são ambiciosos perigosos. Daí concluía que a liberdade de organizar empresas era um perigo público, que a indústria no Brasil seria artificial – e que o Estado liberal (em nome dele pensava e agia) deveria intervir na economia para evitar tudo isso e proteger a atividade agrícola, que seria “destino natural” do país e por isso mereceria tal cuidado pelo poder.
A versão de teoria política dessas ideias era a de que a divisão de poderes típica das democracias que se implantavam no ocidente levaria apenas a perigosos choques entre poderes, de modo que havia necessidade do Poder Moderador na forma como foi posto na constituição imperial: como poder acima dos outros, interventor, capaz de garantir a subordinação da sociedade ao estado.
Em termos práticos a crença se realizava no modo descrito pelo famoso Sorites de Nabuco: “O Poder Moderador chama quem quiser para organizar o ministério; essa pessoa faz a eleição, porque há de faze-la; esta eleição faz a maioria. Eis o sistema representativo em nosso país”.
A intervenção para garantir a vitória antecipada do indicado pelo imperador para comandar o ministério funcionou de 1841 a 1889 sem nunca falhar. Ao contrário da liberdade do eleitor, a tutela estatal foi a regra política pétrea no período – acionada unicamente a partir de cima, pelo Poder Moderador. Este privilegiado acionamento foi defendido a ferro e a fogo pelos líderes conservadores, até o momento em que eles aderiram à proposta republicana de eliminar a instituição das leis brasileiras.
Como interpreto no livro, o que ligava essas proposições conservadoras à realidade brasileira era outra instituição, aquela da escravidão. No sentido propriamente institucional, a escravidão é bem mais que o poder de um senhor para ter um homem como propriedade e arrancar pela força todo o valor do trabalho que seu escravo realiza.
Para os conservadores brasileiros esta possibilidade de fato era também a fonte da justiça e do direito – ao ponto de JJ Azeredo Coutinho, um dos primeiros teóricos da interpretação, ter publicado em 1808 um livro com o título “Análise da Justiça do Resgate de Escravos com a Costa da África”. Neste sentido o título de propriedade sobre o escravo é visto como algo que vai muito além dos fatos.
Ter escravos seria também deter valores morais, que as instituições deveriam santificar e sancionar. Para começar, fornecendo um título, que transformava a posse em uma propriedade juridicamente perfeita. Por ser perfeita era também considerada moralmente irretocável, socialmente justa, sancionada pela tradição.
Todos esses valores deveriam se refletir não apenas neste título, mas estar expressos em todas as instituições. A rigor o Estado se obrigava a tratar a escravidão como algo sagrado e inviolável – e isso tinha importantes consequências práticas.
Para manter a dignidade da instituição, o Estado deveria, por exemplo, garantir a força necessária para o cumprimento do desiderato. Deveria impedir as críticas à instituição e perseguir abolicionistas. Enquanto foi possível, os conservadores colocaram o governo nacional para defender o tráfico internacional, apesar da proibição legal crescente da medida e de leis internacionais e tratados anti-tráfico. Depois de 1850, para defender o tráfico interno. Mais tarde, a partir de 1871, para postergar a escravidão com medidas paliativas. Finalmente, já na derrocada, tentaram transformar o Exército em tropa de capitães do mato para perseguir escravos que já fugiam em massa.
Enquanto tudo isso acontecia, a escravidão declinava, mesmo no Brasil. Em 1822 os escravos eram cerca de 25% da população do país; em 1889 os libertos representavam apenas 5% da população. Mas as leis que colocavam a instituição eram as mesmas, de modo que as consequências práticas de sua manutenção iam criando problemas cada vez maiores para a maioria que não produzia com escravos – para quem pensa que eram poucos, não custa relembrar que Mauá construiu a maior fortuna do país sem nunca recorrer ao trabalho escravo.
Seus lamentos contra os conservadores expressam esta maioria de produtores livres, cada vez mais relevantes , cada vez mais cerceados pela proteção jurídica, que atuava com a mesma força do momento da criação da constituição de 1824 – em grande parte graças aos esforços dos conservadores que se diziam liberais e admiradores de Adam Smith.
Para se entender a questão, basta um dado. A proteção legal a esta atividade econômica decadente tinha implicações financeiras cada vez mais nefastas. O título de propriedade sobre o escravo era a principal garantia bancária de crédito do país. Para que continuasse sendo o mais aceito por bancos era preciso legislar contra títulos de propriedade competidores. A legislação hipotecária de imóveis era precária. Não havia regulação de penhor de bens. Os patrimônios de pequenas empresas eram legalmente misturados ao da pessoa física do empresário, tornando quase impossível o financiamento de suas atividades – o grosso da economia naquele momento.
Foi lendo “A Riqueza das Nações” que achei o caminho para entender a lógica do conservadorismo imperial. A defesa do “laissez faire” comercial era compatível com restrições à produção interna para o mercado. Era um princípio dos mercantilistas franceses, especialmente Quesnay, que Adam Smith repudiava sem citar o nome do autor.
Em termos teóricos, os conservadores brasileiros eram todos fisiocratas, defensores da intervenção estatal mercantilista, da agricultura como centro “natural” da economia, da classificação da indústria como atividade artificial, jogo que não cria valor nem riqueza.
Todas essas descobertas fizeram parte das conversas com Luiz Haffers na segunda metade de década de 1990 – mas tinham o condão de incomodar naquele momento. Por causa de suas posições liberais acabou se tornando um líder do setor mais avançado da agricultura brasileira, até o ponto de ser levado à presidência da Sociedade Rural Brasileira.
Ele encontrou um caminho paradoxal para firmar sua liderança. Bem ao estilo liberal, declarou-se favorável ao Movimento dos Sem Terra com um argumento inatacável por seus pares:
“Como posso ser contra um movimento cuja finalidade precípua é formar empresários agrícolas?”.
Até mesmo João Pedro Stedile, o líder o MST, teve de se curvar à ideia de que estava lutando por propriedade privada e atividade empresarial.
Assim cada um segurou os seus radicais – e a reforma agrária negociada aconteceu. Mas a tensão era permanente, de modo que ele tinha pouco espaço para pensar em críticas aos conservadores. Continuou reclamando de rentistas, sem nunca admitir que liderava um monte deles. Nas conversas eu forçava esta contradição, colocando-o muitas vezes nas cordas.
Numa dessas ocasiões ele inverteu as posições com um contragolpe digno de um campeão de boxe – com uma tirada de espírito bem a seu modo:
“Existe uma diferença importante entre nós. Você é intelectual, e um bom intelectual. É pago para ter razão, apresenta ótimas razões. Merece o que ganha. Mas acontece que eu sou empresário, e empresário não é pago para ter razão. Empresário é pago para estar certo. Ter lucro mesmo quando faz aquilo que fere suas razões, porque o mercado exige. Então eu estou pouco lixando para ter razão quando tenho lucro”.
Embatuquei. Ele me deixou meses na defesa com suas bem humoradas ironias sobre o valor de mercado dos intelectuais. A que mais me divertia era sua argumentação para justificar a admiração por Gastão Vidigal, dono do Banco Mercantil: era um engenheiro que proibiria a contratação de economistas em seu banco, com o argumento que engenheiros faziam coisas certas e não procuravam ter razão intelectualmente. As que mais me chateavam eram aquelas que definiam o sucesso de vendas de meus livros como uma prova de que os brasileiros só se preocupam com formalidades intelectuais e não sabem mesmo o que é realmente importante.
A certa altura do campeonato, virei o jogo. Por paradoxal que possa parecer, resolvi me tornar empresário. Por muitos anos fora treinado para avaliar riscos e oportunidades em projetos editoriais de terceiros. A grande vantagem do treino é que meu ganho era como o do intelectual – pago para ter razão – enquanto o capital era de um empresário – que só era pago quando estava certo.
Agora o paradoxo iria adquirir outra forma. Precisaria criar livros pessoais capazes de expor aquelas que eu considerava as melhores razões – mas só seria pago quando estivesse certo e vendesse. Não vem ao caso agora falar da parte empírica, dos sucessos e fracassos que aconteceram depois dessa decisão.
Luiz Haffers sabia que um paradoxo humorado, que se fixa na memória, é a expressão clara de um problema importante. Sua distinção entre o “ser pago para ter razão” do intelectual e o “ser pago para estar certo” do empresário embute uma questão essencial na vida brasileira. Tão essencial que merece ser destrinchada em detalhes a partir de uma tragédia atual.
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