Corria o ano de 1975, meu primeiro como aluno de Ciências Sociais. Aulas num barracão com teto de zinco, quente no calor e barulhento ao extremo com qualquer chuvinha. Clima depressivo por causa da ditadura. O presente sombrio era suportado pela maioria por causa de uma curiosa estrutura curricular.
Dizia-se que o curso fora organizado por Florestan Fernandes, que queria sociólogos capazes de trabalhar com diversas metodologias. Como símbolo deste ecletismo escolhera uma tríade formada por Durkheim (e os funcionalistas norte-americanos), Weber e Marx. Nesta ordem, que foge à cronologia, os alunos deveriam ter um semestre de estudos de cada corrente logo que entrassem na faculdade, tanto em sociologia como em política.
Corria o segundo semestre e as aulas sobre Weber. Então, em outubro de 1975, Vladimir Herzog foi morto no centro de torturas paulista do regime militar. A reação não foi o travo amargo de silêncio dos casos anteriores, graças a religiosos iluminados. O cardeal Paulo Evaristo abriu a catedral da Sé para um culto a um judeu. O rabino Henry Sobel foi comandar as orações – e o pastor James Wright as ecoava. Apesar das ameaças e do cerco da polícia, milhares de pessoas lotaram o templo.
Como por milagre, o movimento estudantil ganhou outro ânimo. Surgiu militância por todo lado, com a reorganização de centros estudantis e discussões. Quanto a mim, mal podia esperar o próximo semestre, aquele que seria dedicado a Marx. Tinha a mais límpida certeza de que uma correta leitura de seus textos traria depressa a revolução que explodiria a ditadura. Ainda mais porque a professora designada era Ruth Cardoso, a mãe do Paulo Henrique. Para completar, ela e Fernando Henrique tinham ido passar uma temporada em Princeton, com o que supunha que organizaria um curso revolucionário.
Ela fez isso – mas não exatamente como eu imaginava. Depois de uma rápida apresentação do tema mais castiço do marxismo, a determinação da esfera econômica sobre aquela da política, apresentou-nos os textos de um professor de Harvard com quem andara debatendo o assunto. Seu nome era Barrington Moore Jr e o texto o hoje clássico “As origens sociais da ditadura e da democracia – senhores e camponeses na construção do mundo moderno”.
Resumo muito depressa: um estudo global (incluía o Ocidente, China, Índia, Japão e Índia, além de muita discussão sobre a Rússia) da transição da economia agrária para a industrial. Por todo lado, o mesmo processo de mercantilização da economia, surgimento de uma economia industrial, acumulação e capitalismo.
O diabo estava no particular: os regimes políticos formados para sustentar esta transição tiveram formas diversas. Alguns eram democracias; outros, ditaduras – e havia países nos quais estes se alternavam. Daí meu pavor: ao contrário da cartilha, comecei a perceber que formas dos regimes políticos não eram, sob a luz da análise histórica real, determinação uniforme da realidade econômica. A linha reta entre conhecimento de Marx e revolução socialista que eu traçara começava a se desfazer.
Curioso é que o curso que provocava dúvidas tenha sobrevivido galhardamente ao clima externo. No ano de 1976 os estudantes saíram para as ruas em passeata. A presença maciça da polícia, a tropa de choque com seus gases e cassetetes, transformavam cada protesto numa aventura militar. Mas tudo ia para as manchetes dos jornais no dia seguinte, o que fazia com que cada um de nós participantes visse a si mesmo como um herói revolucionário.
A excitação se refletia na escola. Panfletos circulavam, organizações políticas vinham à luz com suas propostas de revolução. Os debates sobre elas e os atos políticos eram bem mais quentes que as leituras acadêmicas. Como parte deste espírito, em muitos casos o semestre sobre Marx parecia uma decepção. Volta e meia os alunos faziam greve para debater os cursos sobre ele, considerados muito formais e pouco capazes de orientar o que o jargão do tempo chamava de “práxis revolucionária”.
Nada aconteceu com o curso de Ruth. Ela sabia se cuidar. Em tempos nos quais só raros professores tinham acesso à bibliografia estrangeira atualizada – apenas os excepcionais que iam dar aulas em Princeton, por exemplo – não havia exemplar do livro original nem mesmo na biblioteca. Traduções levavam anos ou décadas para aparecer. Para a quase totalidade dos alunos, o único acesso ao texto eram os xerox dos excertos habilmente escolhidos por ela, com ênfase no que leitores de panfletos podiam entender como marxismo.
Mas, como era amigo da família, acabei convencendo a professora a me deixar xerocar a obra inteira, sob promessa de não passar nada adiante e manter silêncio. Imaginava que a leitura da obra inteira iria me ajudar a reencontrar o caminho da revolução, a certeza de que, como dizia a palavra de ordem que gritávamos das ruas, “O povo unido jamais será vencido”.
Não foi bem por aí. Fiel à tradição da Escola de Frankfurt, na qual se formara, Barrington Moore Jr não distinguia os casos dos regimes políticos da União Soviética e da China – os faróis socialistas desses tempos de Guerra Fria. Ao contrário de todos os partidos comunistas e sua propaganda tratava dos regimes desses países como partes não diferentes de todas as outras no processo geral de mercantilização da economia mundial. Não os definia economicamente como regimes socialistas, mas como arranjos governamentais para industrialização e urbanização. Pior ainda reservava palavras bastante diretas para os regimes políticos:
“Nada pode negar o fato patente de que a revolução bolchevista não trouxe a libertação do povo russo; quando muito, pode ter trazido a possibilidade de libertação. A Rússia stalinista foi uma das mais sangrentas ditaduras que o mundo já viu. Embora se saiba muito menos da China é seguro afirmar que as reivindicações do socialismo são ali só promessas, não realizações” (p. 579 da edição portuguesa da Martins Fontes).
Tal frase foi escrita em 1968. E, ela sim, era um conhecimento inteiramente novo no ambiente brasileiro de 1976. Estava além da Guerra Fria. Exigia entender de outra forma tanto a economia – algo de caráter realmente global e impositivo – como a política: o espaço no qual se constroem arranjos que permitem respostas diversas, variedade, composição, acerto entre o global e o local.
Além da novidade radical da análise, encontrei também a mais deliciosa orientação para lidar com estas pesadas novidades. Aquilo que nem dava para conversar no ambiente público da faculdade transformou-se em festa. Ruth Cardoso debatia o livro comigo na cozinha, enquanto ia preparando jantares. Ali a professora forçada para o departamento de política deixava correr a antropóloga essencial – aquela escorraçada da área original por se interessar pelo presente.
Enquanto fazia seus ensopados de sábado (o de coelho era divino), ia me ensinando a pensar. Organizava minhas hipóteses. Quando eu achava que tudo estava certo, ia colocando novos dados. Lá se ia a hipótese – e vinha a lição: “Quando a gente estuda, sempre chega a hora de jogar fora as hipóteses gerais para ficar com os dados novos”.
Os dados eram seu reino de antropóloga. Só deles, sempre particulares, vinha a iluminação real que matizava e dava sentido para a teoria. Só eles davam acesso ao conhecimento do novo, o que estava emergindo. Só na sociedade, não no Estado, havia liberdade para criar – e força para manter uma democracia. Era o livro muito melhorado.
Continuei indo às passeatas, lutando contra a ditadura brasileira. Mas passei a pensar nos panfletos e palavras de ordem ao redor como uma espécie de fast food necessário – mas pouco apetitoso se comparado aos jantares.
A lembrança que ficou em mim deste tempo é muito forte. Tão forte que sustentou uma leitura meio torcida do livro de Manuel Castells, “Ruptura” – apesar de qualidades evidentes para entender o Brasil de hoje que ainda não foram partilhadas com você, caro leitor – mas serão.