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Por raras viravoltas da vida profissional fui juntando leituras e análises sobre meu próprio campo de trabalho. Completei 44 anos de profissão – tempo durante o qual li por dever de ofício um número de publicações brasileiras bem maior do que a dose a que estava acostumado desde a infância.

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Depois, fazendo pesquisa para meus livros, comecei a ler jornais de outros tempos. Primeiro na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, consultando nas heróicas projetoras de microfilmes as coleções do “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro – uma das bases para a biografia do Visconde de Mauá. Corri rolos de algumas décadas de publicação no século 19, tendo uma ideia inicial de como eram os jornais brasileiros em seus primeiros tempos.

Nesta época comecei também a ter as primeiras noções de comparação, consultando coleções de jornais uruguaios e argentinos nas bibliotecas nacionais dos dois países vizinhos, nos quais ele tinha negócios. A primeira impressão foi de que a imprensa brasileira era relativamente civilizada – mas ela mudou logo. A escala seguinte da pesquisa foi Londres. Ali tive acesso ao primeiro número da revista “The Economist”, de 1859 – que trazia uma reportagem sobre Mauá e já tinha o texto inteligente e liberal de hoje. Também consultei os jornais, especialmente “The Times”. Notei uma brutal diferença de qualidade: pareciam já os jornais do século 20.

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O passo seguinte veio quando dirigi a coleção Formadores do Brasil. O objetivo era reunir a obra dos primeiros formuladores de uma visão do que seria o Brasil. Demorei muito pouco tempo para descobrir que cada um podia ser associado a um jornal.

Hipólito José da Costa era apenas jornalista – e que jornalista! Até hoje o “Correio Braziliense’ é uma leitura inteligente e decente. José Bonifácio era vocalizado pelo “Tamoio’, no qual amigos escreviam sobre suas posições. Diogo Feijó escreveu todo seu programa de regente nas páginas de “O Justiceiro”. Frei Caneca fazia o “Typhis Pernambucano”. Bernardo Pereira de Vasconcellos mandava artigos para diversos jornais mineiros.

Como já eram tempos de informática, a equipe de pesquisa que eu comandava foi digitalizando coleções Brasil afora. Encarregado de receber e organizar o material, fui tendo uma ideia mais abrangente de como começou o jornalismo no Brasil. Por falta de recursos não consegui publicar o volume daquele que me pareceu o mais capaz de todos: Evaristo da Veiga, diretor da “Aurora Fluminense”.

Em 1999 fui contratado para criar um arquivo digital para “O Estado de S. Paulo”. Na época isso queria dizer a digitalização de uma parte do arquivo de recortes em papel da redação – um dos trabalhos de arquivística mais bem feitos que jamais vi. Cada pasta trazia não apenas recortes de matérias do próprio jornal mas também da concorrência, quando os textos eram julgados melhores. Com o trabalho acabei tendo uma primeira visão de dois séculos da evolução do jornalismo brasileiro. Pouco depois repliquei o projeto no Departamento de Documentação da Editora Abril – de nível semelhante ao do Estadão, mas já muito mais contemporâneo e focado mais em temas que pessoas.

Em 2009 tive outra encomenda da mesma espécie, para a Casa do Pinhal. Como a informática havia progredido muito, foi possível juntar ali um grande conjunto documental sobre o Oeste Pioneiro do café. Este acervo incluía todos os jornais da região e coleções completas dos jornais da capital – sim, apenas neste ano a consulta a elas deixou de ser na base dos volumes encadernados e microfilmes e pôde ser realizada nos computadores.

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Este salto levou-me a tentar um sonho ousado: fazer uma biografia de Júlio Mesquita, que nasceu filho de pais analfabetos em 1862, começou como empregado e morreu como dono de “O Estado de S. Paulo”, em 1927. Foram quatro anos e meio de duro trabalho diário – mas muito gratificantes. Não apenas deu para percorrer a coleção inteira, contando o tempo com certo detalhe, como ainda pude ler alguma bibliografia internacional sobre a história do jornalismo nos Estados Unidos e em parte da Europa.

Então, meninos, acreditem neste tiozinho viajado na história da imprensa brasileira: fake news não é novidade, mas sim uma praga muito antiga, uma praga de mais de dois séculos que rebrotou e grassou epidemicamente de novo na atualidade.

E vejam bem: antes do news já havia o fake. A fofoca, a língua maledicente, o murmúrio pelas costas é a linguagem dos fracos, dos cavilosos, dos ciumentos, desde que a humanidade existe. Com o news, inaugurou-se uma nova era.

O jornal é uma forma de publicação que começou em épocas recentes, na Inglaterra do final do século 18 (se bem que, no Arquivo das Índias, em Sevilha, vi algo muito parecido com um jornal publicado em Lima, no Peru, no século 16). Jornal é filho direto de eleições – feito para convencer eleitores e combater adversários.

Como as eleições nacionais no Brasil começaram cedo, fica muito claro porque os Pais da Pátria tinham todos relações diretas tanto com a eleição para o Parlamento como com o jornalismo. No início do século 19 o jornalismo brasileiro era de padrão internacional de ponta – porque o eleitorado brasileiro seguia o mais avançado padrão mundial como proporção da população.

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O que era este jornal? Basicamente uma publicação com apenas uma folha dobrada ou quatro páginas. Editorial político na coluna da esquerda da primeira página, com as ideias partidárias do líder/proprietário. Artigos que exaltavam essas ideias ou detratavam as de opositores completavam a capa. Na segunda página às vezes havia umas tantas cotações de mercadorias e notícias do exterior trazidas por capitães de navio ou viajantes.

Depois vinha o território inóspito. Jornais custavam dinheiro, políticos nem sempre tinham dinheiro para bancar jornais. Aqueles que estavam no governo arranjavam dinheiro do governo para sua folha (era assim no mundo inteiro nessa época). Os da oposição arranjavam o que podiam. Quase sempre dependiam de uma seção intitulada “Seção Livre’ ou “A Pedidos”.

Funcionava assim: por um preço nem sempre módico o pagante ganhava uma oportunidade para escrever o que quisesse sobre quem quisesse – sem a obrigação de se identificar. Um em mil fazia uma declaração de amor à mulher ou a mãe. O resto seguia um modelo rígido. O texto começava com um verbo (“Diz-se” era campeão) ou uma expressão “É conhecido que”. Seguia-se o nome do “Fulano de Tal” e uma acusação sem provas, geralmente muito violenta.

Isabel de Lustosa define o espírito da época no título de seu livro sobre o jornalismo do período: “Insultos Impressos”. Era assim mesmo. No Brasil e em todo ocidente. Em nenhuma parte era um grande negócio: a tiragem padrão empacava nos dois mil exemplares – o máximo que um político influente conseguia atingir em tempos nos quais o eleitorado era limitado a uma parte pequena da população. A xingação ficava limitada às bolhas de cada um e às brigas nas assembleias.

Então, em 1833 uma novidade exótica apareceu na cidade de Nova York: meninos gritando a manchete do jornal e vendendo exemplares a 1 penny (centavo de dólar) cada. Esses vendedores eram arregimentados por uma oferta atraente: compravam 100 exemplares por 67 centavos (e embolsavam 33 centavos de lucro se vendessem todos) ou levavam fiado e pagavam 0,75 centavos por cada jornal vendido.

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“The Sun” foi uma revolução. Em pouco tempo vendia 19 mil exemplares diários. Mais que depressa apareceram anunciantes interessados em fazer publicidade de seus produtos. Benjamin Harry Day, o esperto proprietário, descobriu depressa que insultos não casavam bem com tanta gente e passou a encher o jornal de relatos interessantes sobre a vida da cidade. Em vez de editoriais e calúnias, criou uma imensa novidade, assim descrita por Michael Schudson em seu livro “When Giants Ruled: the History os Park Row, New Yorker Nespaper Street”:

“Estamos tão acostumados com a ideia de notícia ou com o próprio jornal que se torna difícil perceber quão dramática foi a mudança trazida pelo penny paper. Até então o jornal trazia informações para políticos e homens de negócio; a nova imprensa vendia um jornal como um produto destinado a um público amplo e vendia acesso a este público leitor para anunciantes. Já o produto vendido para os leitores eram notícias, um produto original em muitos aspectos. Em primeiro lugar por apresentar, de maneira agradável e sem partidarismo, eventos importantes no mundo. As notícias de um jornal podiam ser comparadas às de seus concorrentes, o que obrigava a descrições acuradas”.

Neste modelo a “Seção Livre”, embora não fosse extinta imediatamente, tornou-se rapidamente uma nota aberrante. O news começava a ficar mais importante que o fake. Os insultos impressos incomodavam leitores, mas eram tolerados pelos proprietários como fonte importante de receita para o negócio – até que eles começaram a ouvir queixas dos novos anunciantes. Donos de lojas decentes, vendedores de remédios milagrosos, fabricantes de máquinas e traquitanas pagavam o mesmo dinheiro que os caluniadores, mas incomodavam-se cada vez mais em dividir um espaço que não era exatamente agradável por causa dos insultos.

Com o próprio jornal se tornando um negócio minimamente respeitável, os empresários mais atilados começaram a pesar vantagens e desvantagens. Do lado das vantagens estava um argumento jurídico de peso: donos de jornal alegavam que as leis permitiam liberdade de expressão e que os jornais eram apenas veículos, que não podiam ser responsabilizados pelo que outros expressavam em suas páginas – o que também ajudava no jornalismo partidário. Do lado das desvantagens as evidências cada vez maiores de que o jornal vendia tão mais exemplares e publicidade quanto menores os insultos.

Uma mudança na política tornou mais agudo o dilema. A partir da década de 1870 o voto foi se tornando universal para os homens em todo o ocidente. Com isso o noticiário se tornou mais importante ainda: não havia mais sentido em escrever apenas para os fiéis de um determinado partido, era muito mais negócio cobrir o jogo político de maneira neutra, buscando eleitores de vários partidos.

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Com os jornais crescendo, a “Seção Livre” foi se tornando cada vez menos importante, até o ponto que em os maiores proprietários impuseram a mudança: aceitaram se tornar responsáveis pelo que publicavam (em outras palavras, um prejudicado poderia processar o jornal por calúnia ou difamação, até mesmo pelos textos anônimos). No mesmo dia exigiram que os anunciantes da “Seção Livre” passassem a se identificar e aceitarem eles mesmos responsabilidade por suas palavras publicadas.

O fake news desapareceu da grande imprensa – mas não morreu. Foi relegado para o submundo da chamada imprensa marrom, aquela na qual a chantagem e os insultos eram ainda moeda corrente. Tudo isso aconteceu nos últimos anos do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Já o Brasil ficou para trás – mas não só. A mudança foi um problema e tanto para os conservadores – mas isso é história de outro século, que fica para outra coluna.