Parecia impossível, mas aconteceu – em novembro do ano passado. Depois de longos três meses de negociação, finalmente estava na velha e boa garagem da Folha de S. Paulo, pronto para embarcar num táxi como repórter, juntamente com um fotógrafo. Já no primeiro quarteirão o assunto esquentou – ajudado inclusive pelo motorista, quase um rato de redação. Os dois começaram a me entrevistar sobre “os velhos tempos”. A ficha caiu: eu era a inevitável figura pretérita.
O enquadramento no papel começou com o sarcasmo que é a regra das conversas de jornalistas entre si. Os dois riram ao me ver com um bloquinho de anotações, que havia feito questão de pegar na redação. Explico. É uma produção caseira, mantida como lembrança e resquício de tempos muito antigos: aparas de papel jornal cortadas e postas entre duas folhas de papelão grosso, com o logotipo da publicação estampado numa delas, tudo juntado por uma larga espiral de plástico. Antes do gravador portátil, ainda na era do linotipo, o bloquinho se constituía em instrumento essencial de trabalho do repórter – a bem dizer quase o único. Permitia fazer as anotações em qualquer lugar, sem nem necessitar apoio numa mesa. A posse deste bloquinho, naquela conversa, me datava no tempo dos dinossauros.
As perguntas sobre o bloquinho não serviram apenas para me fazer sentir obsoleto. Pelo lado positivo, rapidamente me levaram à categoria da lenda viva, do cara que conta casos da redação num tempo que os interlocutores não conheceram. Isto estabeleceu uma cumplicidade rápida, que levou à pergunta direta:
— E aquela história de você ter sido demitido pelo Otávio quando estava de férias em Nova York, é verdade?
Só posso falar dela por um lado, aquele que vivi. Vamos aos fatos. Conheci Otávio Frias Filho na adolescência, por volta de 1976, quando ele era coordenador dos editoriais da Folha e Teresa Caldeira, minha irmã, e Gilberto Felisberto Vasconcellos, então grande amigo, eram redatores. Nos vimos por aí em várias ocasiões, nas situações comuns a duas pessoas da mesma idade em tempos de oposição ao regime militar. Mais ou menos o mesmo tipo de relação que mantinha com o grosso das pessoas de minha idade que se transformaram em profissionais do jornalismo na Folha, quando ele assumiu a direção.
Só fui trabalhar no jornal mais de uma década depois do primeiro contato, em 1987. Já tinha doze anos de experiência profissional em outras empresas. Mas comecei de baixo, como repórter ganhando o piso salarial e sendo chefiado por amigos que tinham menos rodagem. Esta era a normalidade na revolução permanente que seguiu-se à entrega da direção de redação ao Otavinho. A experiência anterior valia nada. Nem mesmo figuras venerandas como Claudio Abramo, mentor e antecessor do novo diretor, escapavam de receber lições de novo jornalismo, dadas pela tropa de choque da jovem guarda. A resistência às lições era punida com demissão sumária, de modo que havia sempre muitas vagas como a que sobrara para mim.
Quando comecei o furor maior já havia passado, e a revolução se transformava em sistema. Era hora de implantar normas, com o Manual de Redação. Apesar disso o clima na redação ainda era de euforia, em boa medida por causa dos resultados econômicos espetaculares (que Luís Frias ampliava bancando totalmente as opções editoriais do irmão, com apoio igualmente integral do pai, Octavio Frias de Oliveira) e de imagem. O jornal que por seis décadas fora secundário se transformava em sólido líder de mercado.
Em tempos de revolução, carreiras meteóricas são possíveis. Em menos de três meses ganhei promoções suficiente para chegar à meca da carreira de repórter: o time dos repórteres especiais, ligados diretamente à direção e enviados para as grandes missões. O pedaço da redação que ocupávamos era apelidado com o sarcasmo do ramo: “gráfica do senado” – alusão a uma sinecura da época.
O maior trabalho era o de passar a semana em Brasília cobrindo a Constituinte – mas sobrava pauta de todo lado. Fiz reportagens sobre crimes, agricultura, esportes, ópera. Não houve setor do jornal para o qual deixasse de ser deslocado. Cada dia era uma aventura, de modo que os executivos não ligavam muito para detalhes como folgas, férias, vida familiar, essas coisas. No meio do turbilhão alguém me ligou em casa um dia à noite, me convocando para cobrir uma pauta. Educadamente disse que não apenas era dia de folga, como estava comemorando o aniversário de meu casamento. O alguém replicou que isso era um detalhe irrelevante. Pedi demissão por telefone.
No dia seguinte o próprio Otavinho chamou-me para uma reunião, pediu para esquecer o mal entendido. Mas em menos de uma manhã já tinha encontrado outro emprego, de onde ele veio me trazer de volta menos de um ano mais tarde. Demorou pouco e veio o inevitável: promoção para editor, o que significava assumir responsabilidades executivas na condução da padronização já vitoriosa. Em vez de seguir o padrão, teria de obrigar os outros a seguirem o padrão.
Otávio continuava ditando um ritmo rápido. Menos de dois meses depois de assumir a revista dominical, fui chamado de novo por ele. Comunicou-me que precisava de mim na Ilustrada, então o carro chefe da imagem do jornal. Retruquei que talvez não fosse boa hora, porque em um mês iria entrar de férias para ver meus filhos, então morando nos Estados Unidos com a mãe. Ele disse que não haveria problemas.
Depois de três meses de saudades fui pegar meus filhos em South Bend, Indiana. Passei alguns dias com eles na Disneylândia, entreguei de volta à mãe. Fui para Nova York encontrar minha mulher. Otavinho interceptou-me assim que cheguei: queria que eu voltasse imediatamente para resolver um problema administrativo.
Ele sabia o que estava fazendo – e eu sabia o que estava acontecendo. Havia um paradoxo em jogo, e dois amantes de paradoxos vendo as coisas de modo radicalmente diferente, como num caleidoscópio.
Uma de minhas primeiras missões delicadas como editor da Ilustrada foi realizar a cobertura de um evento cultural: o lançamento do livro com o texto de Tutankaton, a primeira peça teatral de Otávio Frias Filho. A mistura de linguagem elevada (sim, Otavinho dominava totalmente a língua portuguesa e era capaz de escrever muito bem qualquer coisa e em qualquer estilo) com o tema da explícita devoção ao pai havia me impressionado ainda mais que a férrea confiança familiar que via todos os dias na condução do empreendimento.
O texto me levara a uma conclusão: confiança na autoridade, para ele, equivalia muito a lealdade. Era assim com seu pai. Já eu, filho saído de casa com 18 anos, fui criado muito mais no registro de associar confiança a falar a verdade do coração nos momentos de dilema – e alimentar uma aversão quase completa à obediência compulsória contida na lealdade. Como ocupava o chamado cargo de confiança, chegara a hora de colocar os pingos nos iis. Bem ao modo do Otávio: dilema maniqueísta, sem alternativas de acomodação.
Com essas diferenças radicais de visão sobre o teor de “confiança” entende-se a brevidade da conversa telefônica, que terminou com três atos. Uma constatação mútua de que não havia como eu ficar no cargo. Um fax meu entregando este cargo. Um memorando dele para toda a redação comunicando meu afastamento por não me enquadrar no espírito do projeto do jornal. Coisas da autoridade revolucionária.
Mas zero de heart feelings. Acostumado a essas trombadas do jornalismo, fui trabalhar em outro lugar. Uma semana depois de minha volta Otávio e eu já almoçávamos juntos e examinávamos os temas que atraíam cada um pessoalmente – mas não serviam para manter a confiança institucional. Delícias de ironia fina saíam de cada conversa. Como ambos prezávamos também a formalidade, a capa de decoro público manteve-se por algum tempo. Para o resto do mundo, havia uma ruptura a ser preservada.
Era de meu interesse também. A ruptura fora um grande alívio. Se tivesse optado pela lealdade, possivelmente estivesse até hoje no jornal, um trabalho de que gostava – mas insatisfeito com a obediência. Optando pela individualidade, ganhei a confiança necessária para tentar uma carreira de escritor – algo que seria totalmente impossível com as responsabilidades de um editor.
Não há prova maior desta dificuldade para a subjetividade no ambiente normatizado que o caso do próprio Otavinho. Talento nunca lhe faltou, muito menos o saber que era talentoso. Mas havia o dever de lealdade, ao qual ele mesmo pagava o preço. Precisou de mais de duas décadas de contínua e total prioridade para suas massacrantes obrigações como responsável pelo jornal e suas regras para começar achar espaço para sua expressão pessoal jornalística.
Apareceu seu coração de repórter e narrador. Mas, para mostra-lo precisou acomodar com paradoxos, desobedecer a seu modo. Sabia que não podia publicar relatos como o de uma viagem alucinógena em seu próprio veículo, pois isto feriria normas do manual. Acabou escolhendo a revista “República”, com a qual eu também colaborava, para publicar os textos. Ampliou-se o horizonte de nossas conversas, desde minha saída desobrigadas do manual.
E assim a vida seguiu. Em certo momento, ele ficou muito curioso para saber por que eu resolvera entrar para a Academia Paulista de Letras. Quando expliquei as razões íntimas numa conversa, ele se mostrou tentado. Organizei uma sessão com sua presença, saudei aquele que sempre me pareceu o dirigente de imprensa mais talentoso de nossa geração. Ele retribuiu com um almoço na Folha para todos – mas a candidatura não prosperou. Paradoxos de Academia também foram paradoxos que mereceram nossa humorada atenção.
Tudo isso precisa ser dito para que se entenda a prosa animada no carro de reportagem que ia na direção de uma escola na extrema periferia de São Paulo, na qual um velho jornalista fazia o papel de lenda. Contei minha versão da demissão que virou folclore, tentei explicar que fora mutuamente satisfatória – e ambos ruminaram suas exegeses sobre “confiança”.
Com a reportagem seguindo neste clima positivo, fui entendendo perfeitamente os meses de negociação anteriores. Mesmo achando espaço pessoal, Otávio continuou sendo muito formal e rigoroso com tudo que envolve a disciplina de um jornal. A última das coisas que podia permitir era um veterano passar por cima das hierarquias – pois os tempos da revolução haviam passado há muito.
A conciliação que permitiu a concessão aconteceu porque a época era outra em nossas vidas. Assim como para ele, fazer reportagem sempre foi para mim uma oportunidade de sonhar em contato com o outro. Para explicar isso em nosso peculiar ambiente de conversação, vou me permitir um deslize.
Também Otávio realizava outros sonhos, agora que estava mais velho. Para falar deles não tenho alternativa senão realizar uma segunda traição à lealdade, em benefício das verdades do coração – mas esta é a razão deste texto. A frase que se segue está num e-mail privado dele para mim, de 5 de setembro de 2017:
“Estou às vésperas de uma viagem existencial (nascimento de segunda filha); vamos marcar para daqui a algumas semanas?”.
A conversa preparatória da reportagem aconteceu depois que Emília nasceu (assunto que rendeu frases de pai sonhador) – e um diagnóstico aconteceu (claro, nem a mais remota sombra se mostrou). Fica a prova material dos sonhos de Otávio naquele momento anterior como homenagem deste desobediente pertinaz, com uma dupla lembrança.
Primeiro para partilhar a última conversa sobre um trabalho que ambos fazíamos com grande amor – embora aplicando rigores diversos. E, sobretudo, como uma futura eventual lembrança para a filha esperada, que só vai conhecer o pai (que respeitava seu próprio pai em atos de lealdade) por palavras.
A reportagem foi publicada. Em clima de um paradoxo que passei a amar porque Otávio Frias Filho o amava: “A vida é sonho, e os sonhos, sonhos são”. Que Emília possa um dia ler esta trivial lenda impressa.
PS: Desculpo-me perante o leitor por prometer continuidade de um texto e não cumprir; peço que entendam os motivos e retomo na próxima semana.