Ao longo de sete anos trabalhando com Pedro Paulo Poppovic fui alternando as posições de executivo que monta planilhas e pensa no negócio com aquela de redator ou editor encarregado de transformar o plano em realidade impressa.
Os resultados foram díspares – e cedo aprendi que não adiantava muito pensar pela cartilha de Adam Smith. A vasta diferença de resultados tinha pouco a ver com as planilhas, com o cálculo econômico do valor de troca (este o tema do pensador escocês, que será tratado adiante). As variações práticas nos cálculos possíveis, mostrou a experiência, eram quase sempre de detalhes.
A estrutura de custos de uma enciclopédia era altamente formatada. Papel e gráfica compunham o principal centro de despesas; os investimentos editoriais em redação e direitos vinham a seguir; publicidade formava o terceiro centro de custos. Por mais criativo que fosse um planejador, raramente conseguia mais que atenuar os pesos dos componentes.
Ainda assim o trabalho era muito animado, por uma razão peculiar. Quando a realidade das vendas confirmava a qualidade do cálculo prévio do planejamento no dia do lançamento era meio sem graça. Mesmo quando se confirmava uma perspectiva de lucro não havia condições para Pedro Paulo viajar nas famosas “rugosidades do empírico”.
Havia razões sólidas para esta falta de entusiasmo com os fatos que confirmavam as previsões. A possibilidade de cálculo correto significava que a estabilidade e a consolidação começavam a chegar a um mercado que crescera espetacularmente nos quinze anos anteriores. A época em que tudo era novidade e pioneirismo ficava para trás a cada acerto na rotina de cálculo.
Assim os bons resultados passavam a depender de opções de maior risco. Havia ainda enciclopédias que vendiam muito e davam respeitáveis lucros – ao lado de outras que se revelavam fracassos e geravam prejuízos estrondosos. O fator crítico para a diferença passava a ser cada vez menos a qualidade do cálculo e cada vez mais uma peculiaridade dos livros – que eu aprendia duramente nos momentos em que ficava alocado nas redações.
Um redator profissional de enciclopédias é alguém treinado para escrever com clareza sobre qualquer assunto, ainda que não entenda minimamente dele. Recebi este treino escrevendo enciclopédias gerais em ordem alfabética; de culinária; de música popular; de batalhas e armas da segunda guerra mundial; de sexo e comportamento; de náutica; de fotografia; de história das telenovelas no Brasil – e por aí vai.
Perguntará o leitor: como isso é possível? Respondo: toda enciclopédia mantinha consultores especializados. Um físico, por exemplo, controlava os verbetes e lia os textos de sua área, garantindo num trabalho de poucas horas a precisão da escrita que custava centenas de horas a pessoas que, como eu, não entendiam de boa parte daquilo sobre o que escreviam. Com o tempo e a multiplicidade de assuntos tratados fui aprendendo a empregar termos do senso comum para traduzir conceitos técnicos. A escrever “dor de cabeça”, como falam os doentes, e não a “cefaleia” do jargão médico. Parece pouco, mas é muito.
Esta experiência foi mostrando que o limite do mercado estava sendo atingido por uma peculiaridade do livro que não tinha nada a ver com o cálculo econômico, mas com sua estrutura intrínseca de conteúdo. Um livro, sendo bom, dura a vida inteira de uma pessoa, ou até mais. Uma Bíblia manuscrita do século VII ou outra atual servem igualmente para quem está interessado em seu conteúdo – em seu valor de uso. E, tendo muito valor de uso, um bom livro limita as oportunidades de mercado.
Este paradoxo é tratado em cheio no curto e único trecho de parágrafo (nas 700 páginas do texto) de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, que trata do valor de uso: “Os objetos que têm muito valor de uso frequentemente têm pouco ou nenhum valor de troca. Nada é mais útil do que a água, e no entanto dificilmente se comprará alguma coisa com ela, ou seja, dificilmente se trocará água por alguma outra coisa. Ao contrário o diamante raramente tem valor de uso, mas por ele se pode, muitas vezes, trocar por uma quantidade muito grande de bens”.
Após fazer esta observação o autor volta novamente ao único aspecto da mercadoria que lhe interessava, aquele da troca. Para Adam Smith, “economia” e “valor de troca” são sinônimos; o valor de uso, assunto para filósofos metafísicos, socialistas – e editores com problemas de saturação no mercado.
A partir de certo ponto no final da década de 1970 a rentabilidade dos fascículos só era grande quando encontravam-se novos nichos de conteúdo, de valor de uso. Como a busca implicava também ralar-se nas rugosidades do empírico, engolir prejuízos, as coisas começaram a ficar mais duras para quem vivia do ramo. Demissões ocorriam quando os lucros caíam – algo que se tornou crítico com a recessão de 1981 — de modo que comecei a ficar esperto.
Tinha me formado em Ciências Sociais (fiz o curso noturno, evidentemente). Ia ser pai. Escrevia meus primeiros pequenos textos assinados na imprensa (por seis anos aprendi como anônimo). Pedi bolsa para Mestrado. Recebi uma encomenda para meu primeiro livro, uma biografia de Noel Rosa.
Tudo aconteceu depressa. Estava de férias em Santos, curtindo minha filha e escrevendo o livro. Liga meu irmão, que trabalhava numa corretora de valores em São Paulo: “Você não quer dar uma passada aqui para falar com o Filinto?”. Este vinha a ser Eduardo Marcondes Filinto da Silva, diretor da F. Barretto Corretora. O máximo que chamara minha atenção nos poucos encontros sociais em que estivéramos juntos foi o fato de ter nascido no mesmo dia do ano que eu.
Ele foi direto: “Queria que você viesse trabalhar como gerente de marketing da corretora”. Para que se entenda minha resposta é preciso esclarecer que, naqueles idos, a norma em grandes empresas, até mesmo uma editora como a Abril, era ter um “Departamento Comercial”, sem distinguir atividades. Por isso fui igualmente direto: “Posso ser, se você me explicar o que é marketing e o que faz uma corretora”.
Para minha surpresa ele replicou que queria isso mesmo, uma pessoa capaz de trazer um olhar novo para o trabalho. E mencionou o salário – três vezes o que eu ganhava na editora. Lá se foram as enciclopédias, a bolsa de mestrado já aprovada, a utilidade da maior parte de meus conhecimentos anteriores.
No início era o tumulto. Naquele tempo o mercado financeiro funcionava na base do berro, do telefone com fio – mas com a mesma grande dose de adrenalina e informação fragmentária. Neste ambiente era difícil para alguém que não estava na dança aprender sobre ela. Tateei como pude.
Em pouco tempo descobri como empregar meus conhecimentos de redator e bolei um instrumento de marketing bem simples: pequenos folders, cada um explicando um dos vários tipos de aplicação disponíveis em linguagem de gente – um mini fascículo capaz de ser lido por qualquer pessoa. A ideia era deixar um display com todos eles nas agências do Banco F. Barretto, o carro chefe do grupo.
Embora achasse o trabalho de uma clareza total, a ideia foi posta ao teste possível no tempo. Com algumas provas gráficas em mãos, fui ao que se chamava “correr agências”. Embarquei no fusquinha de Carlos Paulino de Abreu Sampaio, veterano do mercado financeiro e dotado de uma grande capacidade de ouvir pessoas – além de uma resistência invejável.
Saímos cedo de São Paulo. Perto da hora do almoço estávamos na agência de Casa Branca, tomando café com o gerente. Sampaio sabia puxar prosa e era simpático para mostrar os folders. Também sabia controlar minha inevitável tendência para argumentar quando o gerente fez as primeiras críticas. A caminho de Vargem Grande do Sul, explicou que a gente estava ali não só para mostrar, mas para ouvir. Indo para São Sebastião do Paraíso já estava começando a perceber que nem tudo seriam glórias. Em Divinolândia já deu para ver onde estavam os baixos. Depois de Caconde e Tapiratiba a coisa começou a engrenar.
À noite, em Mococa – a sede inicial do banco – já havia me rendido à capacidade de observação prática do Sampaio. Sem nunca perder a simpatia ele foi me explicando o trabalho de buscar dinheiro parado e oferecer um prêmio em dinheiro para trocá-lo por um título financeiro – cada folheto falava numa troca desta espécie – era apenas a metade do trabalho no mercado financeiro.
A corretora ganhava dinheiro cobrando comissões ou aplicando em títulos de maior rentabilidade – por isso a segunda metade do trabalho era mais fácil ali, pois as decisões de investir eram tomadas por técnicos. Já o gerente do banco ganhava dinheiro emprestando a clientes, o que exigia uma sensibilidade maior para o valor do dinheiro.
Ao longo dos dias seguintes, enquanto percorríamos três dezenas de cidades e agências, fui me dando conta do funcionamento de um universo novo para mim. Ao contrário da editora, na qual os limites eram dados pelo grande valor de uso do produto, a questão ali era entender os limites de algo por definição paradoxal: o valor de troca do dinheiro, afinal o meio de troca por excelência.
Nada deixava isso mais claro que a resistência de gerente após gerente aos folhetos que explicavam o fundo de ações. Esta aplicação era quase considerada maldita no interior agrícola de São Paulo da época, pela memória da queda da Bolsa que marcou o fim do chamado milagre brasileiro. Os gerentes foram me ensinando o motivo: todos aplicavam pensando na alta, ninguém se conformava com as perdas reais que vieram.
A volatilidade do mercado acionário tornava claro que aplicações financeiras tinham risco – o que é um dilema para possuidores de dinheiro. Quem mantém a posse e entesoura, sem empregar o dinheiro para sua finalidade precípua da troca, está na verdade fruindo seu etéreo valor de uso: uma possibilidade futura de troca. Nas palavras de Adam Smith, “O poder que a posse da fortuna assegura é o poder de compra, um certo comando sobre o trabalho ou o produto do trabalho que está então no mercado”.
Conversando com o Sampaio fui entendendo que os folhetos propunham algo sério: realizar uma troca pela qual o comando potencial que a posse do dinheiro inerte garantia passava para a corretora, cambiado pela promessa de devolver mais dinheiro – e mais comando potencial – no futuro.
Esta troca embutia riscos, mas falar deles era então um grande problema, capaz de atrapalhar seriamente a confiança do investidor. Num mundo onde estar inerte era ter comando, escrever claramente sobre a abdicação da inércia por um investimento de risco tinha lá suas complicações.
A figura que renuncia ao comando de hoje para realizar um amanhã é aquela do empresário. Foram anos para entender este papel – até que apareceu um debatedor sensacional.