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Meu primeiro encontro com a grandeza de Irineu Evangelista de Sousa, Barão e Visconde de Mauá, aconteceu em 1987. A fazenda dos Pires do Rio, o casarão que fora a fortaleza familiar de minha infância, foi vendida. Encarregado pela família de ir retirar os objetos que haviam sido de minha mãe, fui encaixotando o que era preciso.

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No porão ficava uma de suas estantes de livros, nas quais ninguém mexera por anos. As portas de vidro impediram a devastação pela poeira, de modo que muita coisa estava em bom estado. Fui me surpreendendo com a qualidade de suas escolhas em História – afinal a área em que se formara.

Até aquele momento não dava atenção especial a esta disciplina. Na graduação me contentara com a única matéria obrigatória; o que lia era mais necessidade geral que propriamente estudo sistemático. Com esta bagagem pregressa fui separando alguns títulos que me despertavam a atenção entre os muitos volumes encapados com papel e com o título reescrito à mão com sua letra regular.

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O valor das escolhas era mais afetivo que qualquer outra coisa. A morte de minha mãe num acidente de automóvel provocara uma ferida difícil de conviver (a dor nunca passa). Então fui separando a parte que ia pedir na divisão com meus irmãos por critérios simbólicos – e este era o valor: até hoje, sobre minha mesa de trabalho, repousa o volume dela da “História do Brasil” do Frei Vicente do Salvador, o primeiro livro com este título, da década de 1620.

Como a caixa com essas escolhas não estava completa, fui passando alguns livros do bolo geral para ela. Na última camada ficou “Mauá”, mistura de compilação de textos originais e biografia feita por seu bisneto Alberto de Faria. Terminado o trabalho sobrou um tempo antes do embarque. Como não tinha o que fazer, peguei o livro que estava em cima.

Comecei a ler e não parei. Naquela altura da vida estava mudando de vida de novo, indo trabalhar como repórter de economia da Folha de S. Paulo. E comecei a perceber uma gigantesca sombra: com a formação que tinha, não era razoável que desconhecesse tanto a história do maior empresário do país. Devorei o livro em muito poucos dias.

E fui em busca de mais. Em questão de meses havia batido todos os sebos de São Paulo e do Rio de Janeiro, esgotando o pouco que se publicara sobre Mauá. Em 1990, ao lado de meu querido amigo Sergio Goes de Paula, comecei a procurar documentação nos arquivos históricos – nos intervalos de trabalho e nas férias.

Resolvi transformar aquilo que começava a ser uma pesquisa em tema de um doutorado em Ciência Política. Tendo como foco Mauá, que foi militante e deputado pelo Partido Liberal, queria entender a grande disputa política do império entre liberais e conservadores. Comecei primeiro aperfeiçoando meus conhecimentos pelos correligionários liberais: Sousa Franco, Feijó, Tavares Bastos, Evaristo da Veiga.

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Passei então para os conservadores que Mauá combateu duramente a vida inteira: Visconde de Cairu, Visconde de Itaboraí, Visconde do Uruguai, Bernardo Pereira de Vasconcelos. Para minha surpresa todos eles, embora militantes empedernidos das hostes conservadoras, definiam a si mesmos como liberais e diziam-se os mais perfeitos discípulos de Adam Smith.

Quanto mais ampliava as leituras, menor foi ficando a possibilidade de esclarecer o paradoxo da admiração comum por Adam Smith. E não consegui ajuda dos universitários. Meu orientador, o muito saudoso Eduardo Kugelmas, bem que tentou. Curioso terminal, tentou ampliar seus já grandes conhecimentos no período imperial, sem conseguir encontrar uma solução. Chamou os colegas de departamento – Boris Fausto e Gildo Marçal Brandão em especial. Nada. Foi atrás de Fernando Novaes. Nada de novo.

Ganhei um problema e tanto. Fui me aprofundando em leituras cada vez mais raras – naqueles tempos a teoria política do período imperial era estudada por muito pouca gente, especialmente concentrada nos cursos de Teoria do Estado e Direito Constitucional de umas poucas faculdades de Direito, com destaque para a Usp.

Para ir adiante, tomei uma decisão radical. Em 1991 era o secretário de redação da revista Exame. Corria o processo de impeachment do presidente Collor, de modo que o trabalho era sempre animado. De repente resolvi deixar a corrida pela notícia presente de lado. Pedi demissão. Como tinha um dinheiro guardado, resolvi investi-lo em mim mesmo e melhorar minha formação.

Gastei boa parte do oceano de tempo que me sobrou me transformando em rato da biblioteca da Faculdade de Direito da Usp e da Câmara Federal em Brasília. Comprei uma coleção completa das Atas do Senado – 75 volumes. Nada de resolver o problema.

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Ah, sim. Ler “A Riqueza das Nações” também não ajudou inicialmente. Tanto Mauá como os adversários tinham o livro como bíblia. Também não adiantou ler Ricardo, o economista que o barão mais conhecia e respeitava.

Foi então que, num domingo no clube, toquei no assunto com uma figura lendária: Luiz Marcos Suplicy Haffers. A biografia justificava a fama. Nascido em 1935, na década de 1950 foi ser pescador no Alasca, ganhando o apelido de Caribu, que o acompanhou pelo mundo afora. Tornou-se trader de algodão, indo vender o produto pela Ásia. Numa dessas viagens trouxe uma das primeiras (possivelmente a primeira) prancha de surfe para o Brasil.

No início dos anos sessenta foi abrir fazenda no Paraná. Começou com algodão, passou para o café. Avançou para a indústria, montando com a família Mesquita (de “O Estado de S. Paulo”) a primeira fábrica de papel de imprensa brasileira, a Pisa. Vestia-se com o apuro de um lorde inglês, jogava polo – e este foi o desastre que nos aproximou.

Polo é coisa para jovens. As quedas são inevitáveis e violentas. As fraturas uma regra. Luiz Haffers tinha moído o quadril perto dos sessenta anos, quando os ossos demoram a colar. Andava com uma bengala de castão de prata, coxeando mas dizendo a todo mundo que voltaria a jogar. Ficava assistindo jogos e treinos horas a fio.

Um dia, acabamos almoçando juntos. Brinquei que éramos dois dândis com tempo, mas ele ficaria mais ocioso porque não voltaria a jogar. Ele foi direto: “A dor da fratura é suportável. Continuo sonhando com jogos todos os dias. Ficar sem polo vai ser insuportável”. Mudei de assunto, tocando na economia do império. Seus olhos brilharam.

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Tinha em sua biblioteca um livro raríssimo: “Notes on Brazilian Questions”, publicado numa única edição em 1865 por William Dougal Christie. Começou a resumir o enredo a seu modo – que tento reproduzir aqui de memória.

Este senhor seria um daqueles imperialistas ingleses mandados para a América em tempos de glória. Cônsul numa ilhota no Caribe, acabou não se sabe como embaixador no Brasil. Resolveu aplicar com o país os métodos duros, dando ordem para a frota de guerra bloquear, em 1863, o porto do Rio de Janeiro – por uma questão secundária. Foi rude a ponto de o Brasil romper relações diplomáticas com a Inglaterra.

Com isso prejudicou muitos negócios ingleses, de modo que foi removido do serviço diplomático na volta. O livro fora escrito para criticar os “interesses poderosos” dos empresários brasileiros, que teriam levado sua carreira à ruína. Com isso, concluía Luiz Haffers, o livro seria ótimo para entender que havia empresariado no Brasil – algo que só os brasileiros não veriam.

Claro que nossos almoços se tornaram muito regulares deste dia em diante. Cada um tinha uma barreira intransponível para lidar com a questão. A minha estava na universidade, com meses de leitura e debate sendo incapazes de dar uma chave para entender a separação entre liberais e conservadores no império. A dele estava no mundo dos negócios – e vale a pena ser detalhada.

Luiz Haffers era um cafeicultor que conhecia profundamente os mecanismos mundiais de comércio. A maior parte de seus pares eram empresários que moldavam suas posições tendo em vista a realidade local de terem um único cliente: o Estado brasileiro. Desde 1906 o governo paulista era um importante comprador de café em todo o mercado nacional. Desde o início da década de 1930, com a criação do Instituto Brasileiro do Café, o governo federal tornara-se comprador monopolista de toda a produção brasileira exportável.

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Esta montagem institucional criou uma realidade inescapável para os milhares de produtores brasileiros. Tinham de vender café para o governo, de modo que muito dos lucros tinha a ver com a proximidade da autoridade – e menos com a capacidade de atuar no mercado. A junção das partes fazia mais: cimentava a política brasileira de tentar manter um mercado internacional regulado por cotas e preços prefixados. Alienava o produtor brasileiro da luta concorrencial.

O governo Collor desfizera o arranjo que durara quatro gerações. O Instituto Brasileiro do Café deixou de atuar tanto como comprador como regulador do mercado mundial. Os produtores brasileiros foram expostos diretamente à concorrência mundial. Milhares não resistiram, perdendo dinheiro e destruindo cafezais. A grita pela volta do governo ao mercado era gigantesca.

A vida de trader dera a Luiz Haffers uma visão que partia da concorrência mundial para o mercado local – como a de Mauá no século 19. A paixão de aventureiro do mundo e jogador de polo desenvolvera o gosto pelo risco – e a disciplina rígida para tomar decisões.

Somando as duas coisas, investia em tecnologia nas suas fazendas e na busca de variantes que tivessem sentido a partir do estudo das tendências do mercado mundial. Na época isso se traduzia em opção pelo café arábica (o mais nobre e de maior valor no mercado) e pela tentativa de maior produtividade com o café adensado. Não sei o quanto isso deu certo, apesar de ouvir explicações exaustivas almoço após almoço.

Mas tenho de prestar minha homenagem à sua visão de futuro. Ele dizia que era muito melhor a política de mercado aberto à concorrência internacional que os lucros do mercado fechado. Que os produtores incapazes de concorrer deveriam ser eliminados. E falava num futuro.

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Para ele, no início dos anos 90, o futuro era um Brasil que iria ser varrido do mercado de baixa qualidade, especialmente do café robusta, para ter sobreviventes concentrados na busca de valor, dos prêmios para a qualidade, das marcas próprias.

Neste ponto foi realmente profético. A participação geral do Brasil no mercado mundial caiu, mas caiu especialmente porque as culturas de cafés de menor qualidade não conseguem competir com o Vietnã ou a Indonésia. O crescimento da produção e das exportações vem se concentrando na produção de arábica. No mercado interno cresce a fatia dos cafés de grife, com os produtores vendendo qualidade e obtendo margens com marcas. A turma do genérico garantido pelo Estado desapareceu sem deixar herdeiros visíveis.

No que interessava para mim, o debate entre nós dois levou a entender uma distinção clara entre liberais e conservadores, feita por ele, cujo resumo transcrevo de memória: “Do ponto de vista econômico, conservadores são rentistas em busca de proteção; já os liberais, empresários em busca de risco e mercado. No Brasil dominam amplamente os conservadores rentistas – e um Estado montado a seu gosto. Os verdadeiros liberais pagam um preço alto e são altamente incompreendidos”.

Veja bem, caro leitor: tanto um como outro são a favor do mercado e da iniciativa privada. Conservadores e liberais, no entanto, buscam mecanismos radicalmente diferentes para chegar lá. Quão diferentes no caso brasileiro do século 19, o leitor pode encontrar em “Mauá, Empresário do Império”. Com um agradecimento explícito a Luiz Haffers no posfácio. E ele ajudou em mais que criar uma distinção essencial para um livro.