Mesmo para se reler, “O Capital” exige tempo. Gastei os quatro primeiros meses de 2009 na tarefa. E a releitura teve um efeito imediato: permitiu uma reavaliação ampla das relações entre a obra e a maneira como ela foi geralmente empregada por adeptos brasileiros. A parte mais essencial desta avaliação, pelo lado do entendimento da realidade nacional, resultou no livro “História do Brasil com Empreendedores”, publicado no final do ano da releitura.
Ficou mais. Para começar, uma sensação de incompletude, derivada da própria natureza da tentativa intelectual. Marx pretendia uma interpretação que abarcasse a totalidade. E “totalidade”, em seu caso, significava conectar a vida econômica, as estruturas de vida social por ela determinadas, o regime político, as instituições legais e a cultura.
Os filósofos da Antiguidade faziam isso definindo um Logos, um princípio de razão identificador da totalidade. Sabiam das limitações do que podiam abarcar, de modo que explicitamente deixavam de lado – e prestavam respeito – ao território dos deuses, fossem do povo que fossem. Além disso limitavam as relações de suas afirmações espirituais com a matéria (ou, dito de outra forma, empregavam o mundo físico como projeção de suas ideias, limitando-se a uma metafisica).
O pensamento católico fez do Dogma um Logos, numa tentativa de unir Razão e Fé. Ainda assim era uma pretensão de totalidade limitada, pois deixava espaço para a chamada razão natural, aquela que manteria as crenças dos gentios. Já a versão protestante fechou esta porta, tornando absoluta a identificação entre o Razão e a Palavra do Livro, eliminando a brecha da razão natural. Deste modo a cultura ocidental criou o espaço para a reação iluminista contra a associação entre fé e razão.
A partir do século 17 começou a vicejar a noção de que Razão se limitava à descrição de relações entre fatos delimitados, medida por instrumentos precisos: a ciência, capaz de produzir um conhecimento mais adequado da realidade, seria o centro do conhecimento racional, enquanto a religião seria uma questão relegada a um universo mítico. A pretensão da totalidade desapareceu do horizonte das explicações.
A graça de Marx está em pretender manter a busca da totalidade dos filósofos da antiguidade (objeto de seu doutorado) num tempo em que raríssimos intelectuais se propunham a tanto. Não bastasse, pretendeu ainda que essa totalidade fosse expressa em linguagem científica – isto é, exposta por uma metodologia explícita e com pretensão de objetividade, de modo que os resultados pudessem ser medidos e comparados. Com isso “ O Capital” deveria ser uma explicação total da vida social, de amplitude ainda maior que a “Política” de Aristóteles – que foi o tema da coluna de duas semanas atrás.
Foi árduo. Depois de uma década de esforços, conseguiu publicar alguns estudos prévios, a partir de 1859, e o primeiro volume de “O Capital”, em 1865. Como sentiu que ainda faltavam estudos, mergulhou de novo na rotina de chegar ao Museu Britânico na hora da abertura, sair quando as portas fechavam – e ler de noite em casa.
Com mais duas décadas deste regime montou um conjunto de anotações que os amigos mediam em metros cúbicos – e nada de achar o caminho para a totalidade. Morreu em 1883 sem conseguir terminar o segundo volume. Seu grande parceiro, Frederic Engels, assumiu a tarefa. Seguindo as versões mais atualizadas do plano de obra traçado, publicou o segundo volume em 1885 e o terceiro em 1894. Quando morreu, em 1895, o trabalho passou para as mãos de Karl Kautsky, que publicou o quarto volume em 1905 – meio século depois de iniciado o projeto.
Ler tudo isso em ordem não apenas consumiu meus meses, mas deixou ainda mais clara uma impressão. Por mais atraente que fosse o projeto, por mais prometedora que parecesse ser a metodologia (o chamado materialismo histórico), por mais esforço que se fizesse, não foi possível completar a promessa tão atraente no início, aquela de transformar a narrativa da História em objeto de uma descrição verificável por cientistas.
No caso específico de “O Capital”, isso significaria definir conceitualmente o capitalismo de um modo tal que um estudioso de qualquer ciência fosse capaz de verificar suas leis e chegar ao ponto de fazer previsões sobre a História. Esta é a promessa inscrita no primeiro capítulo do primeiro volume, de um modo que ainda é bastante atual.
Ao contrário do que muita gente ainda imagina, a definição essencial de capitalismo (Marx cunhou o termo, o que mostra até onde suas ideias se entranharam no senso comum) não tem tanto a ver com o capital – que lhe é muito anterior – nem com o trabalho pago. Semanas atrás, falando de Aristóteles, vimos que havia capital e artesãos recebiam dinheiro pelo trabalho já na Antiguidade.
O que é específico do capitalismo é o fato de o trabalho ter se transformado em mercadoria genérica (algo que o trabalho especializado do artesão não era), estar amplamente ofertado num mercado. Marx nota que esta situação exige uma igualdade jurídica formal entre compradores e vendedores: para alienar trabalho, este precisa ser uma propriedade do vendedor, que ele dispõe por um preço e condições determinadas. Em outras palavras, o capitalismo pressupõe o indivíduo livre.
Como Aristóteles, Marx emprega a distinção entre valor de uso e valor de troca para explicar as relações sociais criadas a partir da economia. Mas agora, no capitalismo, para mostrar como o dinheiro domina as trocas. A compra de trabalho assalariado em dinheiro aumenta bastante a necessidade do uso de moeda na economia. O antigo exemplo do tear que produz um bem de uso ganha outro significado.
Do lado do detentor de capital, porque ele precisa comprar os meios de produção (o fio para o tear, por exemplo). Precisa vender o produto, que se torna bem de uso novamente (assim é o tecido para o comprador). Já o operário precisa comprar suas roupas –eventualmente tendo de pagar em dinheiro por aquilo que ele mesmo produz. Assim a economia capitalista exige muito mais trocas de posição de um mesmo objeto entre valor de uso e valor de troca. Marx empregava o conceito de metamorfoses para definir esta troca constante de posições, algo que lhe permitia descrever simultaneamente a economia e a vida social, o capital e o trabalho.
Mas, ao fazer isso, deixa de lado a igualdade formal. O nexo contratual essencial entre comprador e vendedor fica de lado na análise, com simples formalidade ou, em seus termos “aparência socialmente necessária”. A análise passa a se concentrar na desigualdade na apropriação. A possibilidade de compra de trabalho por um detentor de capital é que propicia a espiral de acumulação de riqueza e separação de classes do regime. Riqueza, porque o detentor de capital consegue se apropriar de parte dos frutos do trabalho assalariado; desigualdade, porque o fosso entre comprador e vendedores aumentaria a cada ciclo produtivo.
É curioso o modo como Marx analisa a evolução dessas partes desiguais. No final do primeiro volume (o único que publicou em vida, como já vimos no ano de 1865) ele aponta para o fato de que sua imbricação exigia um aumento de produtividade:
“Com a divisão do trabalho e o emprego de máquinas se elabora mais matéria prima em menos tempo, ou seja, o processo de trabalho absorve uma massa maior de materiais. Isto é efeito da crescente produtividade do trabalho. Por outro lado, a massa maior de máquinas, ganhos do trabalho, matérias primas, edifícios, altos fornos, meios de transporte, etc. é condição para a produtividade crescente”.
Mas ao analisar cada fator deste processo conjunto separadamente, aponta para direções opostas. Do lado do capital, percebe uma necessidade de se haver com um arranjo produtivo no qual sua importância é crescente: a própria acumulação faz com que o capital constante ganhe uma proporção cada vez maior no todo da riqueza. Para que isso seja possível, Marx aponta para uma realidade que era pouco notada em seu tempo:
“Só neste regime se colocam a serviço da produção gigantescas forças naturais, capazes de levar a uma transformação do processo produtivo em aplicação tecnológica da ciência”.
Na via inversa, quando analisava o processo de acumulação pelo lado do trabalho, notava uma regressão:
“A queda relativa do capital variável, acelerada com o incremento do capital total que avança em velocidade maior, se mostra com um crescimento absoluto constante da população operária, mais alto que aquele do capital variável e dos meios de subsistência que este proporciona. A acumulação capitalista produz constantemente uma população trabalhadora excessiva para as necessidades medias de exploração do capital, ou seja, uma população excessiva ou sobrante”.
Assim termina o primeiro volume da obra, chegando quase ao ponto. A tecnologia e o aumento da produtividade do trabalho gerando um peso cada vez maior para o capital na produção total, o trabalho sendo cada vez mais irrelevante.
A consequência lógica estava prevista: a concentração chegaria a um ponto no qual as taxas de lucro cairiam inexoravelmente, numa sociedade cada vez mais dividida entre uns poucos ricos controladores de capital, saber e máquinas e uma multidão dispersa no chamado “exército industrial de reserva”, o termo que cunhou para definir a população sobrante.
Neste momento viria uma crise final, com todo o sistema chegando a seu limite e exigindo a implantação do socialismo. Mas como a pretensão era aquela de apresentar um argumento cientifico e uma demonstração da totalidade da vida social, faltava provar.
Os dezoito anos entre a publicação do primeiro volume e a morte de Marx, apesar da violenta dedicação aos estudos, não foram suficientes para encontrar o caminho. A tarefa passou para outros – mas falar deles é algo que fica para a próxima semana.
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