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Reminiscências de Max Weber 2: da economia à religião, passando pela natureza

O leitor que leu o texto publicado na semana passada terá notado uma certa admiração minha pela análise de Weber. É um fato que pode ser estendido a quase toda sua obra, com uma notável exceção. Minha relação com o clássico “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” começou em 1975, quando o livro (o primeiro que li do autor) foi obrigatório no curso de Sociologia.

A primeira impressão, negativa, teve duas fontes. A mais relevante tinha a ver com o objetivo explícito da obra: combater Marx. A intenção era apresentada de modo quase panfletário, definindo o pensamento do atacado como “materialismo histórico ingênuo segundo o qual ‘ideias’ são geradas como ‘reflexo’ ou ‘superestrutura’ de situações econômicas”. No mesmo parágrafo da desqualificação o autor formula sua tese central, segundo a qual “o espírito do capitalismo existiu incontestavelmente antes do capitalismo”. Assim o assunto era apresentado como uma disputa sobre causa e efeito: o que veio primeiro, a economia ou a ética? Também de forma de opostos primários: ou ele está certo ou eu estou.

Este enquadramento pesou para o jovem leitor que fui. Não consegui ler o argumento sem ele, de modo que respondia negativamente ao desafio proposto. Se bem me lembro, a decisão pré-formada pela leitura de Marx levou a um juízo sumário dos opostos, tomada em conversa de bar. Era algo do tipo: “se o espírito do protestantismo explica capitalismo, deveria haver capitalismo na Guiana e no Suriname, que foram colonizados por protestantes”. De qualquer forma, foi uma resposta tão esquemática quanto a pergunta.

A segunda abordagem negativa veio pouco mais tarde, a partir da leitura do magistral “Errantes do Novo Século”, lançado no mesmo ano e de autoria de Douglas Teixeira Monteiro. Ele era discípulo de Roger Bastide, seu herdeiro nos estudos de Sociologia da Religião – um curso de grande fama em minha época de estudante. No convívio com esta experiência aprendi uma maneira de abordar sociologicamente o assunto que me cativou: considerar a fé de cada um fato inquestionável, que o olhar do estudioso deve aceitar sem julgamento.

Isso acentuou a má impressão com o livro, que me pareceu mais racionalização a favor de uma fé que propriamente ciência – e isso apesar de não saber minimamente quais as crenças pessoais do autor (só muito mais tarde vim saber que a mãe era calvinista e assim formara o filho na infância, embora ele se declarasse sem fé específica).

Foi preciso a paciente e amorosa persistência de Gabriel Cohn, meu orientador no mestrado e um dos maiores conhecedores de Weber no mundo, para que, nos anos 80, fosse lendo o restante da obra e descobrindo que ela ia ficando tão melhor quanto mais ia deixando de lado a causalidade e partia para uma abordagem taxonômica, que dispensa radicalmente a necessidade de teorias. A diferença de resultados ficou clara com a leitura do monumental “Economia e Sociedade”, que me reconciliou com Weber. Embora o fantasma de Marx continuasse presente, o autor maduro soube criar uma abordagem alternativa realmente válida: definir tipos empíricos em vez de disputar .

Fiquei com esta boa impressão até uma década depois, quando escrevi “A Nação Mercantilista”. Tratava-se de um ensaio, portanto de uma forma de abordar problemas que estava mais próxima da tipologia weberiana madura que da causalidade marxista. A base para o ensaio eram as descobertas então recentes da econometria: medidas quantitativas para economias no passado.

Essas medidas mudavam muita coisa do lado brasileiro: mostravam que a economia colonial era rica e baseada em pequenos proprietários individuais (o que transformava o valor explicativo da dupla latifúndio/exploração, antes sagrado para direita e esquerda, em fantasia). Isso mudava muita coisa – mas não só no Brasil.

Um livro chave para a disseminação dos estudos econométricos foi “Time on the Cross”, de Robert Fogel e Stanley Engerman, que trazia mudanças radicais no conhecimento do passado econômico norte-americano. Para o problema que tratava, a economia da escravidão, a mais relevante mudança foi a descoberta de que a economia escravista do sul colonial era muito mais produtiva que se imaginava antes, muito mais capaz de gerar lucros e riqueza – e muito mais importante que aquelas das colônias do norte.

Esta descoberta levou a uma revisão da história do escravismo na América como um todo, na qual meu trabalho se encaixava. O Brasil com passado medido em números ganhou outro relevo histórico – e outro ponto na história comparada da riqueza.

No início do século 17 era a colônia com a economia mais produtiva e mais rica entre as colônias não-mineradoras do continente. Aqui se criou um modelo invejado, e que foi reproduzido para todo o norte (Caribe e América do Norte) a partir da década de 1640, quando a fórmula foi exportada pelos holandeses expulsos de Pernambuco.

Descrevi o processo em detalhes no capítulo 7 do livro, linkando os novos conhecimentos sobre as diversas realidades continentais gerados por econometristas de vários países. Muitos destes estudos trouxeram à luz uma transformação radical, ocorrida no século 17, na avaliação da escravidão pelos protestantes.

No caso holandês, antes de a Companhia das Índias Ocidentais tomar Pernambuco, em 1630, os pastores calvinistas que faziam parte de sua direção tiveram o cuidado de colocar no regimento um artigo que proibia o tráfico de escravos nos navios da empresa, pois consideravam esta instituição uma barbaridade de papistas. Rasgaram os regimentos pensando no balanço do empreendimento, transformaram os navios da empresa em transportadores de escravos – e foram seguidos em toda parte na atitude quando a nova dos ganhos escravistas se espalhou na América reformada.

Quatro décadas mais tarde as colônias protestantes de holandeses e ingleses no continente já tinham conhecido a revolução econômica do modelo escravista brasileiro – e todas as mais bem sucedidas o copiaram, ainda que tendo de prejudicar muitos cristãos.

Como muitas colônias tinham começado apenas com seguidores da igreja, educados inicialmente nos moldes da condenação do emprego de escravos, foi um choque pesado quando os mais pobres foram jogados à margem do trabalho e substituídos por africanos. Para atenuar o choque surgiram as leis racistas que marcaram a convivência entre protestantes e seus escravos, especialmente nos Estados Unidos – com resultados que se mostram até hoje.

Conhecimentos como estes tornaram evidentes os problemas com os dados econômicos que sustentavam o argumento de Weber. Considerados precisos na virada do século 20, foram revistos como impressionistas. O exemplo mais evidente dessa reavaliação, no caso do livro, pode ser encontrado nos próprios dados empíricos empregados para sustentar o argumento contra Marx citado acima:

“O espírito do capitalismo existiu incontestavelmente antes do desenvolvimento do capitalismo. Já em 1632 na Nova Inglaterra, havia queixas quanto ao emprego do cálculo na busca de lucro, em contraste com outras regiões da América, e que este espírito capitalista permaneceu muito menos desenvolvido nas colônias vizinhas – os futuros estados sulistas da União – muito embora estas últimas tivessem sido criadas por grandes capitalistas com finalidades mercantis, ao passo que as colônias da Nova Inglaterra tinham sido fundadas por razões religiosas de pastores e intelectuais”.

O conhecimento atual é de outro processo econômico: por razões ligadas ao lucro maior da produção escravista a partir da década de 1650, as colônias do sul com ligações mercantis começaram a receber escravos em massa e se tornaram ricas. As colônias do norte foram bem mais pobres até o século XIX, funcionando como regiões abastecedoras da produção escravista do sul e do Caribe. Apenas depois da independência e das instituições legais que favoreciam a produção livre a situação se inverteu, já no século 19. O desenvolvimento no norte passou a ser maior – inclusive na católica Maryland – que no sul.

Para resumir: as descobertas empíricas da econometria jogam mais a favor da suposição marxista de que a estrutura socioeconômica da escravidão e, sobretudo, dos lucros que propiciava, tem valor explicativo do desenvolvimento econômico e menos para aquela de que a ética protestante tem este papel – caso se queira pensar em causalidade, algo que não faz parte das avaliações fundadas em estatística. Por outro lado, parece claro que apenas no ambiente do norte poderiam surgir instituições favorecedoras da liberdade – e a análise de instituições conta muito na renovada história econômica atual.

Ela trouxe novos matizes. E para entender esses matizes do emprego de dados estatísticos como base analítica, as questões ideológicas associadas a suposições causais são muito menos importantes que a busca de sentido empírico. Neste caso a metodologia posterior de Weber é muito mais útil — pena que ele não tinha dados com a precisão dos atuais nem a confiança metodológica em taxonomia que adquiriria depois.

Confortado por pensamentos como esses deixei meu exemplar dormindo na estante por duas décadas. Para que você, caro leitor, entenda o motivo que me levou de volta ao livro, preciso contar outras histórias.

Enquanto o livro hibernava, comecei a me interessar pela radical transformação no modo de pensar as relações entre economia e natureza. O primeiro a me alertar foi meu amigo Paulo Henrique Cardoso, que passou a trabalhar numa ONG de empresários preocupados com as questões ambientais por volta de 2000. Com ele fui aprendendo os primeiros passos do conceito de “economia de baixo carbono”.

Achava tudo meio fantasia de intelectual até o dia em que nós dois fomos entrevistar alguém muito querido na memória: Antônio Ermírio de Moraes. Convivia constantemente com ele, discutia de tudo sobre uma paixão comum: o Brasil. Jamais ele tocara no assunto “preocupação com a natureza”. Assim que a conversa começou, tive um baque: ele conhecia o balanço de carbono de todas suas empresas, tinha planos estratégicos para impacto zero em todas elas – e estava implementando procedimentos para sustentabilidade completa. Resolvi levar a sério o que ele levava muito a sério.

Mas a esta altura já era empresário e escritor, obrigado a dividir meus esforços entre o realismo dos negócios e as razões do escritor. E o escritor, naquele primeiro lustro do milênio, estava mergulhado na biografia do Padre Guilherme Pompeu de Almeida, publicada em 2006 com o título de “O Banqueiro do Sertão”. Foram anos de leituras e mergulho na realidade profunda do Brasil e da América nos séculos 16 e 17. Fez parte desta realidade uma série de eventos envolvendo a visão de europeus de todas as nações e diversas vertentes cristãs no contato com os tupi-guarani que dominavam o espaço.

Enquanto isso ia aprendendo aqui e ali sobre as novidades mundiais da economia de baixo carbono. Tive um gigantesco salto nos conhecimentos no início da década de 2010, quando fui prestar serviços para a Natura. Fiquei absolutamente espantado com a engenharia de negócios gerada a partir da missão de produzir com grande eficiência ambiental. A competitividade dispara. E mais ainda com as ideias de Luiz Seabra, para quem as fronteiras do pensamento estão num território cuja extensão eu, com todo esforço intelectual, mal conseguia perceber – embora me esforçasse.

Foram quinze anos de tentativas de ampliar a consciência para abarcar as novas exigências intelectuais do ambientalismo até que, em 2015, publiquei um dos produtos deste esforço, o pequeno ensaio “Teoria do valor Tupinambá” (que está no livro “Nem céu nem inferno”).

A base para o ensaio era um discurso de um chefe tupinambá recolhido por um dos membros do primeiro grupo protestante a pisar em solo da América, o calvinista Jean de Léry. Apesar de ter uma avaliação muito negativa dos tupinambá, que classificou teologicamente como descendentes malditos de Caim e animais, ele ficou fascinado o suficiente com o pensamento do chefe para reproduzi-lo na íntegra. Tal respeito ao pensamento alheio era muito raro no padrão de julgamento com severidade bíblica, muito semelhante ao dos católicos da década de 1550.

Vou resumir dramaticamente: o chefe considerada a natureza o paraíso e a produção econômica como a arte de destruir ao mínimo este paraíso, preservando-o para as próximas gerações. No ensaio comparo esta forma de conceber a economia com aquelas de Aristóteles, Adam Smith e Marx, mostrando que ela está mais próxima dos conceitos atuais derivados do ambientalismo que a desses economistas. Então aconteceu o evento extraordinário, que me obrigou a reavaliar o Paraíso – com ajuda de Max Weber: obras importantes duram, independentemente do que pensamos delas.

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