O diálogo entre o chefe tupinambá e um pastor protestante publicado na semana passada, ocorreu na baía da Guanabara provavelmente em 1557. Por muito tempo foi a única fonte a que tive acesso sobre o modo de pensar a produção econômica dos nativos. É um registro de grande valor, porque o anotador do depoimento soube relatar uma crítica forte ao que todos de sua cultura consideravam normal, ou seja, a ideia de trabalhar para acumular riqueza. Vale a pena detalhar o relato:
“Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar suas madeiras. Uma vez um velho perguntou-me: ‘Por que vindes vós outros, maírs e perôs [franceses e portugueses] buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?’. Respondi que tínhamos muita mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
“Retrucou o velho imediatamente: ‘E porventura precisais de muito?’. ‘Sim’, respondi-lhe, ‘pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados’. ‘Ah!’, retrucou o selvagem, ‘tu me contas maravilhas’, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: ‘Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?’. ‘Sim’, disse eu, ‘morre como os outros’. E perguntou: ‘E quando morrem, para quem fica o que deixam?’. ‘Para seus filhos, se os têm’, respondi. ‘Na falta destes, para os irmãos ou parentes mais próximos’.”
Depois de investigar os fatos, o velho tupinambá proferiu seu julgamento:
“Agora vejo que sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que, depois da nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.”
O crucial neste julgamento é o enquadramento como “loucos”, que muito espantou o interlocutor. E o espanto foi, por séculos, o único ponto à disposição de estudiosos. Serviu muito mais para justificar definições de que os índios seriam preguiçosos que para qualquer outra finalidade histórica.
Apenas nas últimas décadas surgiram possibilidades novas para interpretar o trecho. Especialmente a partir da década de 1960, com a disseminação dos cursos de pós-graduação, começou um estudo sistemático das centenas de culturas nativas que sobreviveram ao peso do contato com o modo de pensar europeu. Botânicos, biólogos, paleontólogos, linguistas – e especialmente antropólogos foram fazendo registros isolados.
Apenas no atual milênio começaram a surgir sínteses capazes de dar um novo sentido ao curto trecho recolhido no século 16. É o caso, por exemplo da tentativa de fazer uma suma do conhecimento recente sobre a cultura de todos habitantes da área amazônica, realizada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em “Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena”, publicado em 2002 no livro “A Inconstância da Alma Selvagem”. São dele estes trechos:
“Boa porção da cobertura vegetal da Amazônia é resultado de milênios de manipulação humana. William Balée, o pesquisador que tem extraído as lições mais importantes destas descobertas observa que a ‘natureza’ amazônica é parte e resultado de uma longa história cultural e que as economias indígenas são adaptações à cultura ou resultado histórico de uma transformação cultural da natureza. Ao contrário do que se imaginaria, aliás, as florestas antropogênicas apresentam maior biodiversidade que as florestas não-perturbadas”.
Uma constatação como esta é o primeiro passo para entender melhor o sentido da frase do velho chefe tupinambá. Como jardineiro enriquecedor da herança para os filhos, ele estava conhecendo as ideias de um povo que sacava do jardim para acumular para si. Conforme mostram agora os novos conhecimentos, também é possível saber que a frase anotada não tratava apenas de sabedoria individual do velho chefe. Estudos recentes mostram que esta forma de pensar a produção econômica era ampla, comum a quase todos os povos nativos:
“Certos limites socioculturais à duração do esforço de trabalho bem como as formas gerais de organização e as concepções das relações com o mundo natural levam a uma homeostase das forças produtivas em ‘nível baixo’ de operação, suficiente entretanto para manter os grupos em condições nutricionalmente luxuosas”.
Os conhecimentos atuais também ligam esse controle da produção para manter a capacidade regenerativa da natureza a outras instâncias da vida social que vão para além da economia:
“Interessados nas relações entre sociologia e cosmologia nativas, pesquisadores concentraram-se nos processos de troca simbólica (guerra e canibalismo, caça, xamanismo, rituais funerários) que, ao atravessarem fronteiras sócio-políticas, cosmológicas e antológicas, desempenham um papel constitutivo na definição de identidades coletivas”.
Esses processos de construção de identidades interligam sociedades de várias culturas num mesmo contexto religioso, aquele do xamanismo:
“O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar perspectivas de subjetividades outras de modo a administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os não-humanos como estes se veem os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos”.
Apesar das tecnicalidades de linguagem (que marcam o tom científico sério com que o conhecimento dos povos nativos é encarado hoje), o leitor pode perceber facilmente onde está o essencial: não há barreiras separando o homem da natureza. A fronteira pode ser atravessada na produção econômica, nas relações simbólicas entre grupos – mas sobretudo pelos religiosos que funcionam como interlocutores entre o homem e o restante da natureza, os xamãs.
Neste contexto é que se localiza a concepção mais próxima daquilo que seria o Paraíso para os povos nativos: a Terra Sem Mal, definida por Pierre Clastres como “o lugar privilegiado, indestrutível, em que a terra produz por si mesma seus frutos e não há morte”. Numa cultura na qual não há separação entre homem e natureza, a Terra Sem Mal, o Paraíso religioso, não é um espaço transcendental, mas terrestre.
Mas nem por isso seria fácil chegar lá. Apenas os grandes xamãs de vários grupos, os chamados caraíbas, conseguiriam interlocução com espíritos ancestrais brilhantes o suficiente para mostrar o caminho até o éden. Nas poucas vezes em que isto acontecia, a notícia se espalhava depressa e uma migração maciça (em 1600 o inglês Tom Knivet foi visto como caraíba e comandou 30 mil tupinambá numa delas) na direção da Terra Sem Mal.
Assim se pode perceber culturas para as quais havia – como pensava o velho chefe – um contínuo entre as plantas, animais, humanos, astros e espíritos. Este mundo interligado forma o primeiro paraíso pensado no Brasil.
Vieram os europeus. A maioria com ambição de dinheiro – e uns poucos que tinham sua própria noção de Paraíso. Ao contrário do que pode parecer empregando as noções de hoje, uma concepção de continuidade entre Homem e Natureza podia ser encontrada em muitos europeus que baixaram na América no século 16. Para aqueles que se deliciam com boa História existe o clássico de Sergio Buarque de Holanda, intitulado “Visão do Paraíso”. Sem tirar o gosto da leitura, alguns trechos do livro podem indicar os pontos que os novos conhecimentos sobre a cultura nativa ajudam a iluminar o pensamento europeu daquela época.
Os nativos da América provocaram evocações positivas em muitos viajantes, a começar de Cristóvão Colombo:
“Colombo não estava tão longe de certas concepções correntes durante a Idade Média acerca da realidade física do Éden que descresse em sua existência em algum lugar do globo. E nada o desprendia da ideia, verdadeiramente obsessiva em seus escritos, de que precisamente as novas Índias, para onde o guiara a mão da Providência, se situava na orla do Paraíso Terreal”.
A fonte que assegurava a possibilidade era a própria Bíblia:
“O ponto de partida encontra-se no Gênesis, onde se narra como o Senhor Deus, tendo criado o homem (…) plantou para sua habitação um horto ‘da banda do Oriente’. Ali espalhou plantas agradáveis à vista e boas para a comida; no meio destas achava-se a árvore da vida, cujos frutos dariam vida eterna, e a da ciência da vida e do mal, única expressamente defesa ao homem, sob pena de morte. Do mesmo horto sairia um rio, que se dividiria, ao deixa-lo, em quatro cabeças”.
O livro de Sergio Buarque narra em detalhes como foram necessárias centenas de tentativas (narradas todas elas) e mais de dois séculos para que o conhecimento físico do território, somado ao acúmulo de relatos de cada passo por escrito (um eliminador de alternativas indisponível para povos com cultura apenas oral), jogasse por terra a esperança de encontrar o Paraíso na América.
Um compêndio brasileiro suplementar deste esforço é o exaustivo trabalho de Manuel Rodrigues Ferreira, intitulado “As Bandeiras do Paraupava”. Este era o nome nativo do Pantanal, lago que fica no centro do continente e do qual se supunha nascerem quatro grandes rios (Amazonas, Paraguai, São Francisco e Araguaia). Até o século 18 houve quem procurasse ali o Jardim do Éden – deixando uma impressionante coleção de mapas e narrativas.
Por quase uma década achei que essas duas noções de paraíso parcialmente compatíveis bastariam para fazer a história multicultural do Brasil. Foi assim até 2015, quando a grande escritora Beatriz Bracher me enviou o texto do romance “Anatomia do Paraíso”. Foi um choque.
O romance entre um estudioso de “Paraíso Perdido”, de John Milton, e uma anatomista-legista se passa no Rio de Janeiro contemporâneo. Só esta situação mostra, pelo registro do inesperado, que sempre se deve estar aberto para se entender o Brasil. Uma alternativa histórica escapara: a vertente da negação teológica (e não experimental, como nos casos citados acima) da possibilidade do paraíso terrestre.
O próprio enredo do romance me levou à leitura do poema de Milton, publicado em 1667, já no fim do período de pesquisa da hipótese terrestre na América. Traz uma forte revalorização do Pecado Original como centro da condição humana – uma ruptura completa com a possibilidade de que a natureza e a vida espiritual humana formassem um contínuo (ainda que problemático) expresso pelo paraíso terrestre, como nos dois modelos anteriores.
De Milton, já pensando em voltar ao clássico de Max Weber, resolvi ler antes a obra de João Calvino. Bastou um dos capítulos de “A Instituição da Religião Cristã” para me mostrar o tamanho da ruptura com a hipótese de um paraíso terrestre: ”Que todo o gênero humano esteja sujeitado à maldição e decaído desde os primórdios de sua origem pela queda e expulsão de Adão”. Nele é feita outra associação, inteiramente oposta:
“Dado que, em vista de sua culpa, afluíra de baixo ao alto e de alto a baixo a maldição que grassa por todos os recantos do mundo, não seria estranho que fosse propagada por toda sua descendência”.
Essa maldição central não se limita ao humano, mas se estende bem além dele:
“Tal é corrupção hereditária, que os antigos chamam de pecado original, entendendo pela palavra ‘pecado’ a depravação da natureza, até então pura e boa”.
Aqui, no lugar do contínuo entre natureza e espírito, homem e paraíso, existe um ruptura absoluta. De um lado os malditos, do outro aquele que pune. E o Brasil?
Com este novo motivo em mente, tirei da poeira das estantes “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Sem as disputas de causalidade com Marx ou a validade empírica dos dados, que marcaram mal as leituras anteriores, o ponto central religioso – especialmente a doutrina da predestinação calvinista, segundo a qual a salvação humana foi definida por Deus no ato de condenar Adão e não muda pelas obras em vida do fiel, cujas consequências essências Weber analisa desta forma:
“Este isolamento íntimo do ser humano explica a posição absolutamente negativa do puritanismo perante todos os elementos de ordem sensorial e sentimental na cultura e na religiosidade subjetiva – pelo fato de serem inúteis para a salvação”.
Esta seria a grande ruptura. Sem caminho terrestre para o além, resta ao homem trabalhar continuamente, pois o acúmulo de riqueza seria sinal de graça – e ponto fulcral do argumento weberiano:
“A valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como meio ascético simplesmente supremo e a um só tempo comprovação segura e visível da regeneração do ser humano e da autenticidade de sua fé tinha de ser, no fim das contas, a alavanca mais poderosa desta concepção de vida que chamamos ‘espírito do capitalismo’. E confrontando agora o antigo estrangulamento do consumo com esta desobstrução da ambição de lucro o resultado é evidente: acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança”.
Esta doutrina era dura até mesmo para protestantes. Comparando luteranos alemães com puritanos anglo-saxões, Weber nota uma diferença:
“Isso que nos alemães impressiona como ‘bom humor’ e ‘naturalidade’ em contraste com os anglo-americanos, que ainda hoje [1904] se acham sob o signo da anulação radical do status naturalis na verdade são antíteses de conduta de vida que decorrem da menor impregnação pela ascese do luteranismo”.
Era duro demais até para o anglicano John Milton, que, segundo Weber, teria dito: “Posso ir para o inferno, mas um Deus como este jamais terá o meu respeito”.
Assim se completou um ciclo com três paraísos – que permite rever de maneira inusitada o encontro entre um sapateiro e um chefe tupinambá em 1557, recolocando o terceiro paraíso na profundidade da História do Brasil.
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