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Violeta e a liberdade

Arquivo Gazeta do Povo (Foto: )

Tudo dando certo, a publicação deste texto vai coincidir com minha presença em Curitiba. Vou aí fazer uma conferência sobre meu último livro, “A História da Riqueza no Brasil”, na Unicuritiba. O encontro é no dia 23 mas chego antes, por motivo de prazer. Minha filha Violeta mora na cidade, gosta dela – e me apresenta sempre aspectos novos e interessantes.

Desta vez vai ter também prosa nova sobre assunto clássico. Andei lendo um texto dela que gira em torno de um tema que me é muito caro: liberdade. Então você perguntará: o que tem de novo num tema antigo?

Aí é que está. Semanas atrás publiquei aqui mesmo uma coluna que falava da liberdade como o valor que sobrou para Theodor Adorno e Max Horkheimer, em plena Segunda Guerra Mundial, reconstruírem sua crença no ser humano depois de desilusões com o comunismo, o nazismo e o capitalismo.

Nunca cheguei tão fundo na descrença, a ponto de só restar a liberdade como valor. Uma das razões mais fortes para meu otimismo com relação a ela veio da conjuntura. Comecei e me entender como gente no final dos anos 60. Minha entrada na adolescência foi marcada por uma transformação radical com relação ao mundo de minha infância: a invenção da pílula anticoncepcional.

Nem sabia o que era isso quando recebi o impacto inicial da mudança, no primeiro ano do ginásio (atual quinta série). Pedagogos de minha escola (soube depois) chegaram à conclusão que a educação precisava se adequar a esta descoberta e convenceram a professora de Ciências a ministrar um dos primeiros cursos de educação sexual dados no país.

A memória mais forte do curso não é propriamente do conteúdo. Lembro vivamente da grande dificuldade que esta professora tinha para escolher palavras, ainda que técnicas, para expressar em público a descrição de um assunto totalmente proibido na época: como acontecem as relações sexuais.

Valeu muito para mim. Com a linguagem do conhecimento substituindo aquela das barreiras morais que assustavam até a professora corajosa, pude entender de um ponto de vista privilegiado a onda que se abateu sobre o mundo na esteira da descoberta.

A maior mudança, claro, aconteceu com a sexualidade feminina. Até minha geração, meninas eram educadas para associar sexo a casamento. Uma das mais eficazes razões para isso era o grande fantasma da gravidez indesejada, do estigma eterno que podia trazer. Havia todo um destino associado a esta situação. O casamento era norma irrecorrível em tempos nos quais a lei vedava o divórcio; a gravidez sem família era vista como desastre fatal. O peso social sobre a mulher, gigantesco.

Na via inversa, garotos eram levados a buscar experiência sexual fora do casamento – justamente com as mulheres sobre as quais pesava o estigma da incapacidade de se conterem – as despreparadas para a vida em família. As “mulheres da vida”, como se dizia das mais distantes deste ideal familiar.

Nada disso valeu para o pequeno grupo de alunos beneficiado com as aulas de educação sexual. Para nós sexo transformou-se em assunto de debate. Para as meninas, mais que isso: em escolha feita com liberdade. Este foi o grande modelo prático da ideia de liberdade em minha formação. Trazer o antes obscuro para a consciência, transformar o que parecia ser destino manifesto em opção. Viver o assunto de outra forma – aquela que hoje é a norma na sociedade brasileira foi cultura de gueto em minha escola.

Assim processei catadupas copiosas. Woodstock, a vida hippie, paz e amor, protestos contra guerras, tropicalismo. Um primeiro lema me ficou, retirado por Caetano Veloso de uma pichação do maio de 68 parisiense: “É proibido proibir”. Outro, mais fundo, veio dos Estados Unidos: “Amor Livre” (e não, como poderia parecer, “sexo livre”).

Esta forte experiência de transformação, vivida como liberdade, aconteceu no âmbito privado. Na esfera pública o país passava pelos chamados anos de chumbo. Ditadura pesada, nulidade dos direitos coletivos, censura à imprensa, violência conservadora ostensiva. O contrário da liberdade. Tudo demorou muito para mudar e cada mudança custou muito esforço de muita gente.

            A rigor só fui ter uma vivência realmente coletiva de liberdade muitos anos mais tarde. Em 1983, já adulto, trabalhando no governo Montoro, fui convocado por Jorge da Cunha Lima, então secretário de comunicação social para ajuda-lo numa empreitada determinada por seu chefe: organizar um comício pelas eleições diretas.

            Foram meses de trabalho noturno extra. Dias duros, com muita gente duvidando que fosse dar certo – o prestígio do governo caíra na lona em poucos meses. Cumpri tarefas com diligência, sem ter certeza do que iria acontecer. A última tarefa designada foi, no dia 25 de janeiro de 1984, a de controlar o acesso ao palanque. Isso queria dizer ficar atrás do palco, no chão.

            Lá fiquei eu, estóico em minha missão. Enfrentei carteiradas às centenas: militantes de esquerda dizendo que eram amigos dos políticos, pessoas com carteiras de jornalista feitas em casa, policiais e militares gritando ordens, “otoridades” de todo tipo, do advogado ao deputado. E eu lá, calmo, o dia inteiro na chuva, ouvindo histórias e repetindo o bordão: “Só entra quem tiver a credencial oficial”. Quase todos recuavam. Apenas militares dirigiam-se para o tenente da PM dando ordens para abrir a cancela e ouviam o bordão dele: “Minhas ordens são para obedecer o civil”.

            Assim passou o dia inteiro. O palanque cobria inteiramente meu campo de visão, de modo que só sabia o que estava se passando na praça pelo barulho, pelos discursos – e pela narração de Osmar Santos, este sim capaz de transmitir clima com informação.

             Então começa o Hino Nacional em uníssono, já no fim da tarde. Não aguentei. Descumprindo o que prometera para mim mesmo, dei uma carteirada no tenente: pedi para ele não deixar ninguém entrar por um minuto, subi a escada.

            E vi.

            Políticos e artistas em êxtase no palco. Milhares, muitos milhares de pessoas na praça, todas cantando na chuva.

            Chorei.

            Desci a escada de volta, com uma sensação que guardo até hoje: a liberdade pública com sua fonte de soberania popular.

            Conto tudo isso apenas para confessar uma ignorância relativa. “Liberdade”, para mim, foi basicamente um conteúdo vivido. Daqueles que nem era preciso estudar. Vinha de graça nas lições como de minha professora de Ciências, nas vivências novas com os amigos, no fazer da política. Mesmo estudando Ciências Sociais tive pouco interesse em me aprofundar na teoria.

            Por isso aprendo muito com a Violeta. Desde sempre ela mostrou vontade de estudar o assunto. Começou quando demonstrou interesse pelo novo papel do Judiciário, mais de uma década atrás. Eu não entendia por que. Ela explicava que existia um novo âmbito de regulação da liberdade, que a firmeza dos direitos passava por ele. Eu dizia que estava bem – mas não sabia muito claramente do que ela estava falando.

            Com o tempo comecei a perceber: havia ganhado uma ideia de liberdade de presente de minha biografia – mas isso já não era mais suficiente. Para minha sorte ganhei outro presente, uma filha que ama a noção de liberdade – mas precisa desenvolve-la com estudos constantes. E tem razão. Para entender a necessidade de aperfeiçoar sempre, basta a seguinte citação de um autor no último texto que ela me mandou:

“O que hoje um inglês, um francês ou um habitante dos Estados Unidos entendem por liberdade? Para cada um é o direito de não estar submetido senão às leis; de não poder ser detido, condenado à morte ou maltratado por efeito da vontade arbitrária de um ou vários indivíduos, de nenhum modo. É, para cada um, o direito de emitir sua opinião, de escolher sua atividade e exerce-la; de dispor de sua propriedade, inclusive abusando dela; de ir e vir sem requerer permissão e ser obrigado a prestar contar sobre seus motivos ou atos. E, para cada um, o direitos de reunir-se com outros indivíduos, seja para defender seus interesses ou professar o culto que prefira; seja simplesmente para fruir seus dias e suas horas de modo mais conforme a suas inclinações e fantasias. Finalmente é o direito de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou algum funcionário, seja por representações, petições ou demandas que a autoridade esteja mais ou menos obrigada a levar em consideração”

            Esse alguém era Benjamin Constant, no distante ano de 1819. O texto foi escrito na nascente da liberdade como princípio maior da organização da sociedade. Completa 200 anos – o que mostra o quão recente é este princípio. Tem uma peculiaridade que me chamou a atenção.

Gostei do texto que considera a liberdade não a partir de uma série de considerações abstratas de princípios, mas a partir de conteúdos concretos e positivos. Vista assim a liberdade são curiosos tanto os contrastes como as coincidências com os tempos atuais. Vale a pena detalhar.

            Ele começa por um conteúdo central: a garantia da liberdade alheia, não a própria. A ideia de que nenhum indivíduo pode sequer ser maltratado por efeito da vontade arbitrária de outros indivíduos continua sendo um dos mais centrais atributos da noção – e ainda quase tão difícil de ser praticado como há dois séculos atrás. Agressões físicas nas ruas e linchamentos morais por fake news são moeda corrente hoje em dia.

Emitir livremente uma opinião não é exatamente objeto de respeito sagrado. Com minha noção intuitiva de liberdade, lembro que em minha infância uma das coisas mais divertidas que havia era ver jogo de futebol na geral. Torcedores dos dois times se misturavam, todos falavam bobagem, todos riam em meio a provocações. Tal liberdade foi substituída por torcidas únicas vociferando – ou, na melhor das hipóteses, torcidas separadas pela polícia. Tolerância com a opinião alheia constrói liberdade; a falta dela cria a falsa liberdade do eu sozinho.

Mas também há mudanças para melhor. Abusar da propriedade já é, há muito tempo, ato proibido pelas leis. Não fosse assim o mundo já teria sido destruído pela poluição industrial – só assim resta uma pequena chance para a humanidade sobreviver no ambiente desta Terra.

Ir e vir sem requerer permissão ou prestar contas não orna muito com uma era de câmaras de vigilância por todo lado, controles de passagem em prédios, programas de identificação facial, sinais de celulares e ips de computadores inteiramente controlados. Este atributo da liberdade praticamente desapareceu, tragado pelo controle social.

Fruir os dias de acordo com as inclinações e fantasias ainda muitas vezes é mais ideal que prática. Muita gente não admite que outros possam viver segundo opções sexuais diversas. Nem mesmo que religiões diferentes sejam escolhidas. Etnias “dos outros” muitas vezes são mal vistas. Tudo isso é assunto para programas políticos que pregam a intolerância com bênção em altares. Ainda assim, o mundo de hoje é infinitamente mais tolerante que aquele dos tempos de Benjamin Constant.

O mesmo vale para a última característica. No início do século 19 a regra era que menos de 3% da população votasse – nos países mais democráticos  entre os poucos que realizavam eleições (o Brasil estava neste padrão progressista naquele momento). Hoje o padrão é o voto universal (o Brasil lerdeou no caminho e só foi empatar de novo na liderança em 1985). Por causa deste grande atraso, muita gente por aqui ainda confunde influir sobre o governo com o direito da facção no poder de pressionar os que não pensam a seu modo – ou exclui-los, o que é pior.

            Enfim: liberdade é um fundamento essencial, mas também uma prática com idas e vindas. Por isso não vai faltar assunto com a Violeta. Liberdade não apenas precisa ser praticada, mas reconstruída a cada dia, a cada passo. Tudo dando certo, buscarei isso nas conversas com ela em Curitiba.

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