Moro num prédio jurássico – desses de paredes grossas, corredores largos e banheiros em excesso. Como disse o educador português José Pacheco – criador da libertária “Escola da Ponte” –, o sanitário exclusivo, proibido para “qualquer um”, é a síntese dos problemas do Brasil. A obsessão nacional pela segregação dos WCs faz a alegria dos vendedores de vasos e, no caso do edifício onde vivo, dos encanadores, que cobram os tubos ao saberem que os canos, ali, ainda são de ferro.
Mas não se trata disso. Num condomínio com meio século de serviços prestados e moradores antigos, é alta a incidência de óbitos por metro quadrado. Quando subo pelas escadas, lembro de uma dezena de pessoas com quem dividi aqueles andares. Consolo-me – estão livres das mensalidades e dos bate-boca ocasionais, encontraram o misterioso ponto do Maps em que nossa rua faz esquina com a eternidade. Um dia, acho o endereço. Os carrinheiros vão amar.
Explico. A cada morte, um ritual se repete: o despacho, porta afora, dos pertences do falecido. Nessas ocasiões, os catadores trabalham dobrado, assim como os nostálgicos, os muquiranas, os acumuladores, os curiosos e os sustentáveis. Faço parte desse arrastão de interessados e interesseiros, seja lá em que categoria me enquadre.
Não pensem que é vapt-vupt. Durante semanas, madeiras, roupas, caixas ganham a calçada em câmera lenta, pois o trâmite é feito por gente que ainda está sangrando. A operação reclama para si a moleza daqueles relógios do Salvador Dalí. É uma liturgia de despedida, pede que se olhe foto por foto, carta por carta, postal por postal.
Sei bem. Há quase dez anos separo os entulhos deixados por meu pai. Desconfio que ele só estará sepultado de fato quando eu acabar o serviço. A faxina derradeira, aliás, pode virar uma caça ao tesouro. Mariquinha, que trabalhava com a gente, foi quem encontrou a aliança de casado de painho, perdida numa pilha de parafusos cheios de graxa, a dois passos do caminhão da Cavo. Foi mágico. Mas, de resto, o desmanche deixa exposta a intimidade dos que se foram: há sempre um segredo sobre nós nalgum canto da gaveta.
Melhor rir. Uma amiga, a quem amo, me presenteou com uma foto dela, sorridente e com dedicatória. Pediu que o retrato fosse colocado sem cerimônia num fundo de estante qualquer. A quem o achar, depois da minha partida, alegará que vivemos uma cinematográfica história de amor. E, the end, ela herdará meu apartamento, pagamento pela minha ausência. Eis o plano.
Melhor não subestimar o poder dos objetos pessoais. A atriz Vera Holtz declarou que adora colocá-los para “andar” dentro de casa, fazendo com que vivam outros papeis no teatro doméstico. São suas ficções. Mas para os mortais, como nós, pegar o que a família de um morto descartou, mesmo que do lixo, é um ato estranho – uma violação de um direito daquela tralha toda, o de ser inútil e virar pó.
Fico dividido. Lembro do escritor lusitano José Saramago e sua pregação sobre “desenterrar homens e mulheres vivos”, mostrando quem eram. Salvar do apagamento os trecos que amaram faz parte desse ato poético. É o que penso ao olhar o molho de chaves velhas que encontrei num dos últimos descartes da temporada. Virariam bosta, como na música. Salvas sobre a mesa da sala, abrem a cada manhã as portas da minha imaginação.
Por essas, me arrependo de despojos que não catei. Deixei para lá uma coleção de plantas arquitetônicas, desenhadas em papel vegetal por um finado projetista do andar de baixo. Por esquecimento ou paixão, ele guardou aquilo tudo, até ficar velhinho. Lamento não ter preservado esse enigma. E dentre as sobras, fiquei uma vez com uma garrafinha verde, na qual postei uma mensagem de minha mãe, fazendo da peça um objet trouvé. Está na estante da esquerda. Peço que a joguem no mar, ou que a ponham na tumba comigo.
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