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José Pio Martins

José Pio Martins

A moral sem Deus e a pequenez humana

O filósofo Immanuel Kant, em retrato pintado por Johann Gottlieb Becker. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Eu conversava com um amigo sobre o significado da ação moral; ele afirmara que toda ação geradora do bem é uma ação moral, e citou como exemplo a empresa que tem, em seu código de conduta, o respeito ao cliente. Respondi-lhe que isso não era verdadeiro e o exemplo da empresa não servia como prova. Claro, as palavras têm certa flexibilidade; porém, a boa comunicação e a linguagem técnica e filosófica exigem rigor na definição e significado das palavras.

No extremo, temos o filósofo Immanuel Kant (1784-1804), para quem uma ação é moral somente se for desinteressada. Para ele, uma ação boa pode caminhar na direção da ação moral; porém, se for executada por interesse, desaparece seu caráter de moralidade ao se destinar a atender interesse do autor, não do beneficiário. Uma empresa que respeita o cliente certamente o faz porque isso dá lucro.

Adam Smith (1723-1790), cuja obra magistral A Riqueza das Ações (1776) deu a base para a compreensão das teorias econômicas, afirmava o seguinte: “Não é da bondade do padeiro e do açougueiro que devemos esperar nosso jantar, mas da defesa que eles fazem de seu próprio interesse”. Ou seja, o padeiro não acorda às 4 da manhã para produzir pão por amor ao próximo, mas por seu interesse comercial.

A virtude moral tem mais chance de ser permanente se não depender de fatores externos à convicção do indivíduo e se levá-lo às boas ações para beneficiar os outros, sem vantagens pessoais

Falei ao amigo que, sobre a virtude da moral, penso assim: “Há quatro razões para ser moral: 1. por temor a Deus; 2. por temor à lei; 3. por interesse; 4. por dever e convicção. Somente esta última é uma virtude real”. Não importa qual das quatro razões leva o indivíduo a praticar a boa ação, mas seu valor moral será sólido se não for por interesse.

A virtude moral tem mais chance de ser permanente se não depender de fatores externos à convicção do indivíduo e se levá-lo às boas ações para beneficiar os outros, sem vantagens pessoais. O filósofo André Comte-Sponville (1952-) diz que há o amor de concupiscência e o amor de benevolência. Se digo que amo frango frito, não é para o bem do frango, é para meu bem: amor de concupiscência. Se digo que amo meu filho, é para o bem de meu filho: amor de benevolência.

Amor de benevolência é quando amo o outro para o bem do outro, ao contrário do amor de concupiscência, que é amar o outro para meu próprio bem. Com a ação moral se dá o mesmo: ajudar o outro por dever moral e amor ao próximo é amor de benevolência. Porém, se faço o bem a alguém para satisfazer meu interesse, a ação é boa, mas não é moral, pois, cessado o atendimento a meu interesse, eu deixo de praticá-la.

Nietzsche (1844-1900) tratou da moral vinculada à crença em Deus, pela qual o indivíduo faz boas ações por medo de punição divina. E quando na Europa a religião e a crença em Deus começaram a decair, em parte pela prosperidade da ciência, Nietzsche anunciou que Deus estava morto e se perguntava o que seria agora da vida social sem o temor a Deus.

O filósofo Luc Ferry (1951-) escreveu sobre a moral sem Deus e seguiu na linha de Kant quando este diz que devemos fazer o bem por dever moral e por amor ao próximo, não por temor a Deus ou ao código penal, nem por interesse próprio. Porém, o interesse próprio é o principal motor das ações bem-sucedidas, especialmente no campo das ações coletivas.

O ser humano é virtuoso e portador de grandeza, mas também é imperfeito e carrega muita pequenez dentro de si

A defesa do próprio interesse faz a humanidade trabalhar, inventar, produzir e prosperar, mas não basta para a ocorrência das boas ações que a humanidade requer. Diante do sofrimento humano, necessário se faz estimular que na alma do indivíduo habitem também o dever moral e o amor ao próximo. No plano coletivo, as ações e as políticas precisam de racionalidade e eficiência econômica, pois estas permitem que seja beneficiado um maior número e com melhores resultados.

Costumo repetir que o capitalismo tem duas máquinas: a máquina de produzir (sistema produtivo baseado na liberdade) e a máquina de distribuir (o governo, que cobra impostos para financiar programas sociais). A maior tragédia do mundo moderno é que, enquanto a máquina de produzir prospera, inova, inventa e se torna cada vez mais eficiente, a máquina de distribuir falha, cria suas próprias castas, impregna-se de corrupção e cumpre mal seu papel de distribuir. De tudo isso, resta que o ser humano é virtuoso e portador de grandeza, mas também é imperfeito e carrega muita pequenez dentro de si.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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