• Carregando...
Detalhe de pintura anônima do século 16 retratando a lenda do anel de Giges.
Detalhe de pintura anônima do século 16 retratando a lenda do anel de Giges.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Para entrar no assunto deste texto é necessário explicar o que é o “anel de Giges”. Em sua obra A República, o filósofo Platão (428 a.C-348 a.C) narra a lenda do pastor Giges e conta que certo dia, após uma tempestade, uma fenda abriu-se no chão e todos os rebanhos foram engolidos.

Giges resolve entrar na fenda e, no fundo do abismo, ele encontra o cadáver de um gigante, que trazia apenas um anel em um dedo. Giges retira o anel, coloca-o em seu próprio dedo e, em seguida, vai para a assembleia de pastores destinada a preparar relatório para o rei sobre a perda dos rebanhos.

Uma vez na assembleia, o pastor nota que, ao girar o anel para baixo, ele se torna invisível. Virando o anel para cima, Giges volta a ficar visível. A descoberta o deixou eufórico. Então, ele vai ao palácio para explicar ao rei sobre o sumiço dos rebanhos. Lá chegando, ele gira o anel... e fica invisível.

Agora, invisível e longe do alcance de qualquer punição, Giges seduz a rainha, assassina o rei, usurpa o trono e inicia longa dinastia. Platão, então, narra que, sendo capaz de ficar invisível, o pastor Giges é tocado pelo desejo de poder, e passa a agir sem escrúpulos, seduz, rouba e mata.

Baseado nessa história, Platão propõe uma intrigante questão: os homens são bons por escolha própria ou simplesmente porque temem ser descobertos e punidos?

Imagine que você encontre um anel de Giges e adquira o poder de ficar invisível e livre para fazer o que quiser, sem a possibilidade de punição pela sociedade, pelas leis e por Deus. Ainda assim, você escolheria agir com base na moral e na justiça?

“Se quer conhecer o homem, dê-lhe o poder”, afirmou Platão. Podemos dizer que o ser humano só é completamente moral quando, mesmo tendo o poder e estando livre de punição de qualquer natureza, ele age com base na moral, na virtude e na justiça.

Aristóteles (384 a.C-322 a.C) disse que o homem virtuoso é aquele que pauta sua vida pelo amor à verdade, amor à liberdade e amor à humanidade. Ou seja, entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o homem virtuoso escolhe o bem e o justo, e não o faz por imposição da lei ou da sociedade, nem por temor a Deus, mas por uma ética de virtudes.

Em geral, vendo a conduta média dos seres humanos, somos inclinados a crer que, se o homem ficar submetido apenas a seus instintos e seus valores, sem a possibilidade de qualquer tipo de punição, provavelmente a sede de poder, fama e dinheiro o empurrará para a trapaça, a corrupção, o roubo e outros delitos.

A reflexão de Platão, baseada em observação da vida política, sugere que muitas pessoas de moral, políticos ou não, agiriam contrariamente à virtude e à justiça caso tivessem o anel de Giges. O filósofo destaca a política talvez pela conexão entre o poder e as muitas possibilidades de fraudes e desvios.

Aristóteles alertou também que “o homem guiado pela ética é o melhor dos animais; quando sem ela, é o pior”. Como a ética não vem obrigatoriamente cravada no código genético das pessoas, a vida coletiva requer normas gerais de conduta justa que, segundo a doutrina liberal, devem ser iguais para todos e aplicáveis a um número desconhecido de casos futuros.

Na esfera da vida pública, o meio de impedir que políticos e burocratas tenham seu anel de Giges e consigam manter seus crimes ocultos e não descobertos é pela publicidade e visibilidade de seus atos, ao lado da punição firme das irregularidades e violações da lei e da moral.

Por isso, a liberdade de expressão, opinião e manifestação é um eixo estrutural das sociedades abertas, das economias livres e dos regimes democráticos; eixo esse que é o primeiro pilar a ser derrubado por toda ditadura que se implanta.

No Brasil, nós estamos há bastante tempo no meio de uma das experiências mais deprimentes e terrificantes que um ser humano pode viver, por causa dos atos de corrupção, assaltos, homicídios, drogas, miséria, ignorância, desprezo pelo conhecimento etc.

Por aqui, é longa a lista de males, crimes e imoralidades, que só existem porque, mesmo que ninguém tenha um anel de Giges, a impunidade é grande demais. O lenitivo para suportar a realidade é uma espécie de alienação e aceitação da tragédia representada pelo quadro de degradação moral, num processo de dessensibilização que torna as pessoas insensíveis e tolerantes ante a fraude, o crime e o mal.

O problema é que uma realidade degradada e com baixo índice de punição tem efeitos maléficos que ajudam a agravar o estado de coisas. Por exemplo, o fato de alguém ser mentiroso, corrupto e imoral não é empecilho para ele obter votos, ganhar eleições e ocupar cargos nos altos escalões da vida nacional.

Aquele que, tendo consciência da violência e do lamaçal ético vigente, quer seguir vivendo aqui deve tomar a decisão firme de se elevar acima da degradação, adotar um consistente projeto de desenvolvimento pessoal, dedicar-se ao estudo e à busca do conhecimento, tanto para dar significado a própria vida como para servir de exemplo do tipo de pessoa que desejamos para a nação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]