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José Pio Martins

José Pio Martins

Crítica da razão eletrônica

(Foto: Pexels/Pixabay)

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Em artigo meu na Gazeta do Povo mencionei certa passagem do filósofo francês André Comte-Sponville na qual ele afirma que “um computador pode resolver um problema, mas só um ser humano pode tomar uma decisão; um computador pode ser eficiente, mas só um ser humano pode ser responsável”. Dois leitores me enviaram questionamentos a respeito.

Um leitor disse que, com a inteligência artificial e os robôs cognitivos, a primeira parte da afirmação não é verdadeira, pois o computador é capaz de tomar decisões, ainda que não possa ser responsabilizado juridicamente. Ou seja, a máquina não pode ser processada, julgada e presa, pois não é um ente humano dotado de vida, vontade e moral.

A afirmação do leitor acabou por me dar razão. Ora, se o computador (ou qualquer sistema inteligente artificial) não é dotado de vontade própria, ele apenas aplica fórmulas inseridas pelo homem, e solta resultados. A confusão está na palavra “decisão”. Gerar resultado a partir de processos eletrônicos não faz do computador um tomador de decisão.

Se o computador (ou qualquer sistema inteligente artificial) não é dotado de vontade própria, ele apenas aplica fórmulas inseridas pelo homem, e solta resultados. Isso não é uma “decisão”

Se a máquina processa dados e informações, aplica fórmulas matemáticas ou lógicas verbais e gera os resultados, não se pode atribuir a tais resultados o conceito de decisão, mas apenas reconhecer que a máquina (ou o sistema, como queiram) executou com eficiência e rapidez as operações para as quais o homem a construiu e a preparou.

Decisão é uma conclusão racional e emocional construída com o uso da razão, inteligência, vontade e discernimento, coisa que somente o ser humano pode produzir. Se eu alimento um computador com fórmulas para fazer uma lista das pessoas que ganham até um salário mínimo e emitir uma ordem de pagamento a favor delas, isso não significa que o computador tomou uma decisão.

A teoria da argumentação de Aristóteles, expressada no livro Lógica, do filósofo Wesley Salmon, ensina que “a lógica trata de argumentos e conclusões, e um de seus propósitos é apresentar métodos capazes de identificar os argumentos logicamente válidos, distinguindo-os dos que não são logicamente válidos”. Um argumento é uma conclusão que deriva de premissas. Sem premissa, não há conclusão, mas apenas uma opinião.

Argumento é uma afirmação ou negação, submetida ao critério de verdade (é verdadeiro ou falso) e ao critério de correção (é correto ou incorreto). Importante: em lógica, verdadeiro e correto não são sinônimos. Uma declaração afirmativa ou negativa pode ser logicamente correta e não ser verdadeira, ou seja, pode ser falsa. O inverso também ocorre.

O argumento é formalmente correto se ele derivar logicamente das premissas, e pode ser falso se não houver evidência que valide as premissas. Se digo que 1. toda vaca voa; 2. Mimosa é uma vaca; 3. logo, Mimosa voa, a conclusão está formalmente correta, pois deriva logicamente das premissas. O problema é que a primeira premissa é falsa, pois vacas não voam.

Assim, a conclusão é falsa, embora correta em termos formais, pois somente é verdadeira a declaração que corresponda à realidade provada. Aqui entra outro aspecto interessante: a noção de signo, significado e referente. Signo é o conjunto de sinais (vozes, sons, imagens) que nos chegam aos sentidos e são processados para formar o significado expresso em palavras.

Decisão é uma conclusão racional e emocional construída com o uso da razão, inteligência, vontade e discernimento, coisa que somente o ser humano pode produzir

O significado é formulado em expressões verbais conforme a definição das palavras nos dicionários. Já o discurso é um conjunto de sentenças, premissas e conclusões expressas pelo falante por meio do idioma, cada um com sua lógica linguística e cultural. Os signos nos chegam e damos significados a eles. Todavia, isso não basta para a compreensão total. Falta o referente, ou seja, a coisa do mundo real à qual o signo e o significado se referem.

Se eu explico a uma criança o que é um leão, a criança terá conhecimento parcial e precário, conforme ela entender as palavras e as imagens (o signo), conhecer a definição das palavras e dominar o sentido das frases verbais. Porém, o conhecimento completo só é possível conhecendo presencialmente o referente, o leão.

O objeto dos signos e do significado está além das expressões verbais, pois é uma coisa do mundo real; sem o contato com ela, todo conhecimento é precário. Mesmo assim, o leão só nos aparece em seus aspectos externos. Como o leão nasce, cresce, anda, come, emite sons, sente, vive e morre, são aspectos do referente não conhecíveis só de olhar o animal.

Vejam a discussão política em campanhas eleitorais! É uma enxurrada de palavras, frases e discursos formando um amontoado de expressões verbais que, no mais das vezes, terminam no significado (muitas vezes confuso e enviesado), sem conexão com o referente. Isso não é ciência, não é filosofia e não é cultura. É conversa no vazio, típica de analfabetismo funcional.

Voltando ao argumento racional, definitivamente não se pode falar em uma razão eletrônica, mas em resultados eletrônicos de fórmulas processadas pela máquina após serem (as fórmulas) inventadas pelo ser humano e inseridas no sistema por esse mesmo humano.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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