Frequentemente confundimos os significados das palavras “ética” e “moral”. Vale notar que “ética” vem do grego ethos, que significa “conduta”, e “moral” vem do latim mores, que também significa “conduta”. Para alguns filósofos, “moral” se refere às condutas corretas, enquanto “ética” é a ciência que estuda por que tais condutas são consideradas corretas.
Neste texto, falo do tratamento que damos aos animais que abatemos para nosso consumo. A tradição cristã afirma que o ser humano é feito à imagem de Deus, e a ordem natural das coisas permite aos humanos fazer uso de animais para suas necessidades. São Tomás de Aquino (1225-1274) dizia que matar animais irracionais não é pecado, porquanto, pela Providência divina, eles foram destinados ao uso do homem. Mas o assunto pode ser examinado apenas sob o prisma da ética, sem envolver Deus.
Nessa linha, um aspecto que merece reflexão refere-se ao abate de animais quando isto envolve algum tipo de sofrimento para o animal, que tem estrutura nervosa, sente dor, sofre e é dotado de certos tipos de emoção.
A carne bovina resulta da criação, tratamento e cuidados com o animal, de modo que sua vida é confortável. Porém, alguns problemas surgem nesse caminho, sobretudo quando o animal vai para o abatedouro
Vejamos o caso do gado bovino, que constitui importante fonte de proteína e, com raras exceções, tem amplo consumo no mundo. A carne bovina resulta da criação, tratamento e cuidados com o animal, de modo que sua vida é confortável. Porém, alguns problemas surgem nesse caminho, sobretudo quando o animal vai para o abatedouro. No geral, o matadouro é um local desagradável, apesar de a tecnologia de abate ter evoluído de modo a reduzir as possibilidades de sofrimento do animal. Mas ainda há situações em que impera a crueldade, e não devemos fugir dessa discussão.
O filósofo australiano Peter Singer (1946-) causou polêmica desde a publicação de seu livro Libertação Animal, em 1975, sobre o direito dos animais. Ele cita o exemplo da carne de vitela, e faz um relato dramático. Após nascerem, os bezerros vão para celas tão pequenas que não conseguem voltar-se ou mesmo deitar-se de forma confortável. Do ponto de vista dos produtores, isso é bom, pois o exercício enrijece os músculos e reduz a qualidade da carne. Nessas celas, os pequenos animais não conseguem realizar ações básicas como limpar-se, o que desejam por natureza fazer, porque não há espaço para poderem voltar a cabeça. Os vitelos desesperam-se com a falta das mães e, assim como os bebês humanos, eles precisam de algo para mamar. Então, eles tentam, em vão, sugar qualquer aresta em suas celas.
Para manter a carne branca e saborosa, os vitelos são alimentados com uma dieta líquida insuficiente em ferro e forragem e, por isso, desenvolvem o desejo ardente dessas coisas. O desejo deles por ferro torna-se tão forte que, se puderem voltar-se na cela, eles lambem sua própria urina, mesmo sentindo repugnância em fazê-lo. A pequena cela, que impede o animal de se voltar, resolve esse “problema”. O desejo de forragem é especialmente desesperador, uma vez que sem ela o animal não consegue formar uma massa de alimentos para ruminar. Não se pode colocar qualquer palha para eles dormirem, pois seriam tentados a comê-la, e isso afetaria o sabor da carne.
Por tudo isso, para esses pequenos animais, o matadouro não é apenas o fim desagradável de uma existência infeliz: é uma vida tão terrível que o abate pode, na verdade, significar uma libertação misericordiosa.
Certa vez, Singer declarou: “Este livro é sobre a tirania dos animais humanos sobre os não humanos. Tal tirania provocou e provoca ainda hoje dor e sofrimento só comparáveis àqueles resultantes de séculos de tirania dos humanos brancos sobre os humanos negros. A luta contra essa tirania é uma luta tão importante como qualquer das causas morais e sociais que foram defendidas em anos recentes”.
O mesmo São Tomás de Aquino, defensor de que matar animais não é pecado, disse que a ação boa é aquela que é boa em seu conceito, em seus meios, em sua execução e em seus resultados. Assim, o sofrimento imposto aos vitelos para nos satisfazer é imoral, inclusive porque há outros alimentos sucedâneos.
Certamente, esse não é um tema agradável, mas a vida nos coloca obrigatoriamente diante de muitos temas desagradáveis. Ignorar fatos inaceitáveis por desinformação, como certamente é caso do drama dos vitelos, nos isenta de culpa. Mas, uma vez que o conhecimento nos chega, temos a obrigação moral de refletir e ajustar nossa conduta.
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