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As sociedades modernas nada mais são que agrupamentos de pessoas vivendo em comunidade e, dentro dela, vários grupos que se formam segundo sua cultura, seus hábitos e seus costumes. A família é um grupo, pequeno em relação ao todo; os habitantes de uma cidade são outro um pouco maior, dentro do qual, pela escola, empresa, clubes, igrejas e outros espaços, os grupos se misturam por interesses comuns, apesar das diferenças entre si.
Podemos dizer que, em sentido ampliado, há os macrogrupos, representados por grandes ajuntamentos de pessoas que, mesmo não se conhecendo, vivem, trabalham e se relacionam sob as mesmas regras legais e normas de conduta social. Os estados e os países são assim e, no limite, o mundo, com seus 7,8 bilhões de habitantes, é uma sociedade que existe sob certas regras comuns, escritas ou não.
As relações econômicas e sociais se dão sob regras, impostas por leis ou aceitas por fazerem parte da cultura local, de forma que podemos dividi-las sob condicionantes: a lei e a moral. Ocorre que, em toda sociedade e em todo grupo, há governantes e governados, líderes e liderados, mandantes e mandados. Tomemos o caso de uma nação. Leis e normas são discutidas, aprovadas e transformadas em obrigação, sob pena de punição em caso de descumprimento.
Muitas vezes, quem faz as regras não são os mesmos que têm de cumpri-las
Porém, há o problema de que, muitas vezes, quem faz as regras não são os mesmos que têm de cumpri-las. É o caso da escravidão, que existiu sob o amparo da lei. Quem fazia as leis da escravidão não eram os escravos. Vista desde hoje, a escravidão é um absurdo moral, mas durante muito tempo ela foi considerada normal e aceitável. Aqui entra o conceito do “véu da ignorância”, que se refere ao método e ao processo destinado a entender e determinar a moralidade dos problemas. Vamos dar um exemplo.
Quando os parlamentares votam uma lei obrigatória para determinado segmento da sociedade, eles estão na posição de detentores do poder de aprovar e impor a lei sobre o segmento a quem a lei se dirige. Por exemplo, quando a França discutia a lei sobre a jornada diária de trabalho, os deputados foram acusados de estarem tratando sobre a vida e o sofrimento dos outros, não deles. Muitos foram acusados de insensíveis às consequências que eles não sofreriam.
O véu da ignorância propõe que o tomador de certa decisão faça sua escolha sobre uma questão social ou moral pressupondo conhecer as informações sobre o conteúdo da medida e suas consequências. Porém, o decisor não saberia de antemão qual sua posição na sociedade após a aprovação da medida, de forma que ele poderia vir a pertencer ao grupo a quem a norma se aplicará.
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Se na sociedade houver somente trabalhadores e governantes, e se está discutindo a lei do salário mínimo ou da jornada semanal, os parlamentares devem saber apenas que, após a lei, eles poderão ser governantes ou operários. O desconhecimento da posição final que a pessoa terá na sociedade levaria a normas e sistema justos, pois o tomador da decisão não gostaria de aprovar uma norma beneficiando um grupo e prejudicando outro, pois ele poderia acabar colocado em qualquer dos dois grupos.
Vários filósofos trataram desse tema sob nomes diferentes, dentro do que se convencionou chamar de “contrato social”. Hobbes, Kant, Locke e Rousseau são alguns deles. Porém, foi John Rawls quem se aprofundou no tema em tempos mais recentes. E ele alertava que a coisa fica grave quando os governantes se convertem em grupo eterno, composto dos mesmos membros, que legislam sobre a população e também em causa própria.
A mim sempre soou estranho que o parlamento tenha o poder de fixar a sua própria estrutura, seu quadro de pessoal e os próprios salários. Ora, seria angelitude esperar de seres humanos normais que fossem austeros e moralmente puros a ponto de jamais serem capazes de fixar a si próprios benefícios que os membros da sociedade que os pagará jamais terão.
Câmaras de vereadores, assembleias legislativas e Congresso Nacional aprovam medidas vantajosas para os membros dessas casas no exato momento em que sobrecarregam a nação com sacrifícios
John Rawls tratou brilhantemente desse tema em seu trabalho sobre “a teoria da justiça” e dizia que os indivíduos têm os meios morais e intelectuais para serem racionais e razoáveis. Porém, se adquirirem o poder de legislar e impor regras aos outros, sabendo que a eles próprios elas não se aplicarão, a chance de que a racionalidade e a razoabilidade sejam prejudicadas é enorme, principalmente em colegiados nos quais o votante pode esconder-se sob o manto da multidão, como é o caso de um parlamento com mais de 500 membros.
No Brasil, tivemos exemplos em câmaras de vereadores, assembleias legislativas e no parlamento nacional de medidas vantajosas para os membros dessas casas no exato momento em que sobrecarregavam a nação com sacrifícios. Exemplo disso foram os aumentos de vencimentos de vereadores em cidades, aprovados na sequência da elevação de tributos para toda a população.
Ou seja, aprovava-se aumento de impostos ou regra mais dura em matéria de aposentadoria; em seguida inventavam, a favor dos parlamentares (municipais, estaduais ou federais), benefícios que os compensavam. Aliás, quando se inventou o teto de remuneração no serviço público, proliferaram as verbas chamadas “extrateto”, os tais auxílios que não entram no teto.
Seria angelitude esperar de seres humanos normais que fossem austeros e moralmente puros a ponto de jamais serem capazes de fixar a si próprios benefícios que os membros da sociedade que os pagará jamais terão
Assim, a ideia de que as decisões seriam melhores e mais justas se cada indivíduo da nação se comportasse sob a hipótese que ele poderia estar entre os membros menos favorecidos é apenas uma ideia bonita. Porém, o exercício do véu da ignorância deve ser estudado, mas apenas para ajudar a população a entender o quanto é nocivo o fato de que os votantes das normas não sofram as consequências de tais normas.
Curiosamente, um alerta sobre isso aparece na Bíblia, de forma que o problema é antigo. Em Lucas 11,46 está escrito: “Ai de vós, doutores da lei, que carregais os homens com cargas difíceis de transportar, quando vós mesmos nem ainda com um de vossos dedos tereis de tocá-las”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos