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Os bens, os valores e as boas ações que nos acontecem têm seu valor percebido por nós principalmente quando os perdemos. Cito o caso da saúde, sobre a qual o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) disse: “A saúde não é tudo, mas sem ela o resto é nada”.
Schopenhauer concluiu que, se temos saúde, passamos a desejar e agir por muitas outras coisas, e é isso que nos move na maior parte de nossa vida. Mas, se perdemos a saúde, todo o resto perde significado, é um edifício de desejos que desmorona e nosso único objetivo passa a ser a recuperação da saúde.
Por extensão, muitos são os bens, situações e virtudes cujo valor somente percebemos e avaliamos quando os perdemos ou quando não existem para nós. Uma criança só chora por comida quando a satisfação da alimentação anterior se esgotou e a sensação de fome tenha retornado.
Essa realidade existe de maneira muito forte em relação à liberdade, à propriedade e à segurança, que são bens coletivos desejados por nós, cujo valor e importância para nossa realização e felicidade pessoal somente avaliamos em toda sua dimensão quando nos são retirados.
No balanço de forças, o Estado é o gigante armado, enquanto o indivíduo é um mosquito sem armas e indefeso
Veja o exemplo da segurança pública. Uma sociedade é compelida a se manifestar com mais veemência pedindo segurança pública apenas quando se instalam o medo e o pânico derivados dos vários tipos de violência, como agressões físicas, assaltos, homicídios, mortes e maus tratos diversos. A existência de tantos males e crimes contra a pessoa humana nos deixa apavorados e com medo da vida em comunidade, e é nessa circunstância que percebemos o real valor da segurança para a paz e a felicidade pessoal, familiar e social.
No início do ano de 1917, a Rússia foi objeto de uma revolução que depôs o czar Nicolau II, derrubou o governo e assumiu o poder com a promessa de implantar um regime democrático, sem opressão e com o direito de propriedade privada. A Revolução Russa completou seu poder em novembro do mesmo ano, quando o Partido Bolchevique dominou tudo sob a liderança de Vladimir Lênin.
Iniciava-se ali uma ditadura sanguinária, longe de ser qualquer coisa parecida com um governo democrático, não opressivo e garantidor do direito de propriedade privada dos meios de produção. Naquele momento, nasciam a opressão e a violência estatal contra o povo. O banho de sangue se tornava o modus operandi do regime.
Após a morte de Lênin, em 1924, Josef Stálin se tornou chefe do governo e aos poucos foi agindo como um déspota cruel, assassino de milhões de pessoas de seu próprio povo nos 30 anos em que ficou no poder. Como líder absoluto, Stálin comandou sua ditadura sanguinária; pessoas foram perseguidas, presas, torturadas e assassinadas sem processo legal e sem direito de defesa. Houve mais. As expropriações de terras e os confiscos de propriedades privadas, seguidos do assassinato puro e simples dos insurgentes e suas famílias, mostraram àquele povo o quão terrível é viver sem liberdades e sob ameaças constantes e terríveis.
O conjunto de liberdades civis compreende, entre outros, o direito à liberdade individual, direito de privacidade, direito de propriedade privada, direito de opinião e liberdade de exercício religioso. Essas liberdades são necessárias para proteger os indivíduos contra o abuso do poder estatal.
No balanço de forças, o Estado é o gigante armado, enquanto o indivíduo é um mosquito sem armas e indefeso. A reversão do padrão ditatorial exige democracia política, com eleições livres, mandato fixo, limitação dos poderes do governo e sistema de justiça regulado por normais legais que protejam os indivíduos do arbítrio do governo e das demais autoridades, tudo votado e aprovado por representantes eleitos pelo povo.
Em uma sociedade livre, alguém somente pode ser acusado, investigado, indiciado, denunciado, julgado, condenado e preso desde que todos os agentes de Estado – polícia, promotores, juízes, desembargadores etc. – estejam submetidos à Constituição e às leis, garantido ao acusado o direito de ampla defesa e duplo grau de jurisdição, ou seja, direito de recurso a instâncias superiores.
Qualquer instituição que conseguir poderes exagerados sobre os indivíduos extrapolará e eliminará progressivamente as liberdades políticas, econômicas e individuais
O ser humano é imperfeito, todas as instituições humanas são imperfeitas e nenhum modelo de organização política e jurídica atingirá a perfeição; logo, qualquer instituição que conseguir poderes exagerados sobre os indivíduos extrapolará e eliminará progressivamente as liberdades políticas, econômicas e individuais.
Quem esclareceu de forma brilhante essa trajetória foi o economista, jurista, diplomata e professor francês Bertrand de Jouvenel (1903-1987), em sua obra O Poder: História Natural de seu Crescimento, reconhecido como o melhor livro de ciência política escrito no século 20, período esse marcado por revoluções, guerras, revoltas e, especialmente, por uma descomunal concentração do poder político. Jouvenel nos convida a perguntar por que motivos praticamente todas as utopias, promessas de libertação e revoluções ao longo dos tempos geraram concentração cada vez maior de poderes nas mãos do Estado e seus governantes, em geral levando o rebelde revolucionário de hoje a se transformar no tirano de amanhã.
O filósofo, historiador e economista Ibn Khaldun (1332-1406) deixou um importante alerta: “O governo impede muitas injustiças, exceto as que ele próprio comete”. O valor das virtudes perdidas somente aparece em toda sua relevância justamente quando elas são perdidas. Nada mais real no mundo atual.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos