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Sempre que encontro alguém idealista, que tem atuação social e pratica a solidariedade pensando em melhorar o mundo, mas que atualmente está pessimista e desanimado em face dos desmandos e da corrupção dos governos, dos políticos e certos agentes privados, sugiro pensar no que disse Albert Jay Nock, de 1936, em seu ensaio intitulado A Missão de Isaías.
No ensaio, Jay Nock relata que, durante o reinado do rei Uzias, no século 7.º a.C., Deus teria instruído Isaías a fazer uma profecia a seu povo, dizendo-lhe: “Diga a eles o que está errado e por quê; e o que lhes acontecerá se não houver uma mudança profunda em sua maneira de agir e de pensar. Fale francamente, deixe claro que esta é a última chance. Fale firme e insista até que eles compreendam”.
Isaías teria ficado profundamente apreensivo quando o Senhor acrescentou: “Devo dizer-lhe que isto de nada adiantará. As elites e os intelectuais desprezarão suas advertências; as massas não lhe darão ouvidos e, provavelmente, você terá sorte se conseguir sair vivo disso”. Quando Isaías perguntou por que deveria fazer tal profecia se ninguém lhe daria importância, o senhor respondeu: “Entenda bem: existem sempre os Remanescentes, que você nem conhece e a respeito de quem você nada sabe. Eles são humildes, desorganizados e aparentemente desinteressados. Precisam ser encorajados porque, quando tudo der errado, serão eles que retornarão e construirão uma nova sociedade; e, até que isso ocorra, sua pregação servirá para lhes manter vivo o interesse e a esperança. Sua tarefa é cuidar desses Remanescentes. Agora vá e dê cabo de sua missão”.
O mundo precisa cada vez mais de pessoas dispostas a ceder um pouco de suas fortunas, de seu tempo e de seu esforço para contribuir com o propósito de reduzir a pobreza, a miséria, a fome, a doença e o sofrimento humano
A missão de Isaías ocorreu-me em face de certa descrença que a sociedade vem manifestando quanto à ética pública que há tempo permeia a política brasileira e os aparatos estatais, em geral com a cumplicidade de agentes privados. Sempre que o governo age, além das consequências materiais, há efeitos pedagógicos. Por exemplo, quando o governo declara moratória ou dá calotes em dívidas, a ética privada no âmbito das empresas e das pessoas definha.
Ortega y Gasset dizia que “a multidão não pensa, apenas segue seus líderes, repetindo os bordões que eles criam e bradam, de preferência, aos gritos”. Vou mais além: quando as instituições públicas cometem atos desonestos, eticamente errados, enormes multidões irão dizer: se o governo e os políticos assim agem, por que eu não posso agir da mesma forma? A esse respeito convém lembrar o desabafo de Rui Barbosa que, diante de corrupção e fraudes, disse: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra; de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, chegará o dia em que o homem irá desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e ter vergonha de ser honesto”.
Talvez, de tudo isso resta que o mundo precisa cada vez mais de pessoas dispostas a ceder um pouco de suas fortunas, de seu tempo e de seu esforço para contribuir com o propósito de reduzir a pobreza, a miséria, a fome, a doença e o sofrimento humano, inclusive porque as desgraças dos outros afetam nossa vida e de nossa família.
Sobre este ponto, uma das características admiráveis da sociedade norte-americana é o grande volume de atos de solidariedade praticados por pessoas e empresas, principalmente a solidariedade realizada de forma regular e permanente. Nos Estados Unidos, as doações financeiras para atividades sociais e ajuda aos carentes representam alto porcentual da renda nacional. O mesmo ocorre com o trabalho voluntário. Certa vez, visitei uma universidade nos Estados Unidos num momento em que se fazia um balanço dos trabalhos voluntários executados pelos alunos naquele ano. O número de horas em atividades comunitárias feitas pelos alunos da instituição era gigantesco.
Esse episódio me fez lembrar que, quando era ministro da Educação, Cristovam Buarque andou pregando que os alunos das universidades estatais gratuitas deveriam dedicar certo número de horas anuais em trabalho social voluntário, até como gratidão à sociedade que paga a educação pública. Era o ano de 2003, primeiro mandato do governo Lula, e o discurso do ministro foi rechaçado e caiu no vazio.
O Brasil não tem cultura de solidariedade regular e em grande escala. Existe sim, porém, esporádica e episódica, muito distante do que se vê nos países adiantados. Mesmo pessoas ricas, quando lhes perguntam por que não fazem doações pelo menos às universidades estatais nas quais se diplomaram gratuitamente, têm sempre uma resposta pronta: “Não doo porque meu dinheiro vai sumir na corrupção, nas fraudes e nas mordomias”. Pensemos nisso!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos