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José Pio Martins

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Sociedade

Quando o Brasil se perdeu?

Casa pobre em Cruz Machado, Paraná.
Imagem de arquivo de Cruz Machado, uma das cidades mais pobres do Paraná. (Foto: Brunno Covello/Arquivo/Gazeta do Povo)

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Começo por uma questão de lógica argumentativa. Há perguntas que, em sua formulação, embutem uma afirmação ou negação e, para aceitarmos a pergunta, temos de concordar com a afirmativa ou negativa nela embutida. Quanto à pergunta-título deste texto, alguém poderia dizer: mas o Brasil nunca se perdeu, logo a pergunta não cabe. Também se pode dizer que o Brasil sempre esteve perdido, portanto não há um momento em que estava no rumo certo e, a partir daí, acabou saindo do eixo e se perdeu.

O filósofo Artur Schopenhauer (1788-1860) dizia que “a realidade exterior é apenas uma apreensão feita por nossa realidade interior”. Para ele, nós não vemos o mundo e os fatos como eles são; nós os vemos como nós somos. Schopenhauer afirmava que, não raro, a forma como percebemos a realidade não resulta de nossa cultura ou preparo intelectual, mas é um impulso que brota de nosso interior, e que ele chamava de “vontade”.

O filósofo reconhecia que nossos estudos e conhecimentos nos fazem perceber e entender muitas coisas, principalmente aquelas neutras em relação aos princípios, crenças e desejos que temos. Por exemplo, se estou pesquisando um motor a explosão, acabarei entendendo plenamente a lógica científica de seu funcionamento e como ele consegue mover um caminhão pesado. Nesse caso, não tenho nenhum viés, contradição ou choque com minhas crenças e vontades.

Nosso país sempre foi cambaleante, ora progredindo, ora retrasando, mas em vários momentos subindo o caminho do êxito. Porém, já faz tempo que a coisa desandou

Mas, se estou fazendo um estudo sobre a existência de Deus, a coisa é muito diferente. Posso iniciar tal estudo já tendo enorme fé que Deus existe ou tendo convicção de que ele não existe. Nesse caso, há o que chamamos “contaminação pretérita do observador”, a qual interfere no processo de investigação e conclusão, pois, de novo Schopenhauer, “todos somos escravos em nossa própria morada”.

Esse quadro me surge quando leio diferentes análises sobre o Brasil feitas por pessoas diversas. Por óbvio, minha investigação e meus argumentos são influenciados por meus conhecimentos e meus estudos, e também pelo que sou como ser humano. O mesmo ocorre com todas as pessoas, desde a mais iletrada até o especialista conhecedor do tema em estudo.

Isso posto, no caso brasileiro há realidades evidentes (evidência como verdade provada e presente), facilmente verificáveis em seus atributos essenciais e atributos acidentais, os quais independem do viés do observador. Por exemplo, quando se analisa a riqueza mineral do Brasil, os minerais encontrados são examinados, medidos e documentados; logo, o viés ideológico do pesquisador tem quase nenhuma interferência nas conclusões. Já no caso de situações sociais, as conclusões não gozam da mesma certeza, pois estão sujeitas às crenças, ideologia e inclinação política do observador.

Nosso país sempre foi cambaleante, ora progredindo, ora retrasando, mas em vários momentos subindo o caminho do êxito. Porém, já faz tempo que a coisa desandou e o país, conquanto tenha alguns espasmos de progresso, parece caminhar a passos largos na estrada de retrocesso. Então, reforço a pergunta: quando o Brasil se perdeu? Vejamos alguns fatos.

Como sociedade, vimos o país atingir a marca de 70 mil assassinatos por ano, e não fizemos nada. Esse número varia de ano para ano, ora é maior, ora é menor, porém é sempre grande o suficiente para configurar uma tragédia humanitária, que assusta e aprisiona a população atrás de suas grades e muros residenciais.

Vimos o país descer degrau por degrau rumo ao analfabetismo funcional de ampla parcela de seus diplomados, resultado do estrondoso fracasso do sistema educacional, e não fizemos nada. Nossos estudantes estão sempre nos últimos lugares nos rankings internacionais de educação, atrás de países pobres e até medíocres.

Vimos crescer a pobreza e a miséria diante de nossos olhos, e não fizemos nada; ou fizemos muito pouco. Somos um dos países menos solidários e de menor índice de trabalho voluntário do planeta

Vimos nossas instituições mais importantes galgarem os mais altos degraus de indecência e imoralidade, e não fizemos nada. As pesquisas sobre as instituições nacionais revelam que perdemos a confiança nelas, e as vemos como caras e corruptas, como também mostram que é baixa a confiança da população nos políticos, ressalvando que, em todo agrupamento humano, há os bons e os maus, os retos e os imorais.

Vimos crescer a pobreza (55 milhões de pessoas) e a miséria (14 milhões) diante de nossos olhos, e não fizemos nada; ou fizemos muito pouco, pois o grau de pobreza, de miséria e de feiura estética e comportamental é visível. E não passemos pano para nós mesmos: somos um dos países menos solidários e de menor índice de trabalho voluntário do planeta.

Seria possível listar mais de nossas mazelas materiais, institucionais e morais, mas não é necessário. Isso já é suficiente para indagarmos: Qual é hoje nossa identidade? O que significa ser brasileiro? Eu não tenho as respostas. Tenho algumas impressões e um monte de dúvidas. Mas penso que a sociedade brasileira, mais cedo ou mais tarde, vai acordar desse sono letárgico e construir o país desenvolvido que faça jus aos ricos recursos naturais que aqui existem.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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