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É crença geral que a verdade é a virtude e a mentira é o vício. Logo, fazer distinção entre ambas e defender a verdade contra a mentira é o que se espera das pessoas de bem. Ao rever o que aprendemos a respeito, especialmente desde a filosofia clássica até Immanuel Kant (1724-1804), surge um emaranhado de situações e hipóteses, e o problema ganha muitas dúvidas.
Atualmente, há um tema na moda: as fake news, ou seja, as mentiras de caráter público, sobretudo em ano de eleições. Eleição é uma disputa, uma competição, e deve ocorrer sob regras que façam o resultado refletir a preferência dos eleitores, cujo julgamento é afetado pelas notícias, informações e propostas dos candidatos.
Em período eleitoral é comum a troca de críticas e acusações entre adversários com o fim de obter vantagens e influir na escolha do eleitor. Nesse contexto, surgem as fake news (notícias falsas), as real news (notícias verdadeiras) e a guerra da propaganda, isto é, a luta entre a verdade e a mentira. E como disse Hiram Johnson, político norte-americano, “na política, assim como na guerra, a verdade é sempre a primeira a morrer”.
A verdade é única e indiscutível? Ou a verdade pode ser relativizada?
A reflexão filosófica nos remete ao conceito de verdade e justifica duas perguntas: a verdade é única e indiscutível? Ou a verdade pode ser relativizada? De saída, podemos responder que a verdade sobre um fato, uma crença, uma ideia ou uma estratégia de ação não é única e definitiva, no mínimo porque a verdade pode ser relativa. Mas relativa a quê?
Para começar, há o relativismo cultural. Há muitas obras escritas sobre fatos e crenças que são aceitos como legais e verdadeiros em um país e tidos como ilegais e falsos em outro. Por vezes, algo ser verdadeiro ou falso não depende apenas de a declaração, afirmativa ou negativa, corresponder à realidade, mas depende também de crenças culturais ou gosto pessoal.
Vou me deter em quatro tipos de verdade: a verdade factual, a verdade derivada de crença, a verdade derivada de gosto e a verdade funcional.
O primeiro tipo, a verdade factual, é uma declaração afirmativa ou negativa sobre um fato provado. Essa é a verdade mais simples e óbvia, sobretudo para fatos materiais imutáveis. Se há um acidente automobilístico e uma pessoa morre, a notícia é única, igual e indubitável. Um veículo destruído e uma pessoa morta constituem um fato provado, e a declaração que o afirma é uma só. Podem existir versões e opiniões divergentes sobre as causas, as circunstâncias, os responsáveis e as consequências do fato, mas não para o fato em si.
O segundo tipo é a verdade derivada de crença. Neste caso, do ponto de vista da lógica aristotélica, a verdade é uma suposição válida para quem nela acredita, porém sem status de verdade factual universal. Alguém diz que Deus existe. Outro diz que Deus não existe. A prova cientificamente válida é impossível tanto para um como para o outro.
Uma prova não é algo que eu invoco por mera crença, mas algo que eu demonstro e que faz minha declaração corresponder às evidências, entendendo por evidência um fato provado sem margem de dúvida quanto à real existência desse fato.
O terceiro tipo é a verdade resultante de gosto pessoal. Imagine o concurso de Miss Universo. Uma comissão internacional anuncia o certame para escolher a mulher mais bonita do mundo. Cada país (digamos que sejam 120) escolhe sua miss nacional e a inscreve no concurso mundial. Na sequência, 120 mulheres seguem para a cidade onde, após várias atividades e desfiles, um corpo de jurados vota e classifica 60 delas, em primeira etapa.
Ser tolerante com as verdades dos outros é preciso, pois a mais radical das características humanas é a absoluta diferença individual
Assim, de etapa em etapa, restam dez finalistas, depois cinco, depois três e, por último, duas vão para a final. Uma é eleita em primeiro lugar e a outra é vice. A Miss Universo passa a ser apresentada como a mulher mais bonita do mundo. Mas isso é verdade apenas para aqueles 100 jurados que a elegeram. Logo, trata-se de mero gosto pessoal, não de verdade factual.
O quarto tipo é a verdade funcional. A afirmação que corresponde ao funcionamento real de um ato ou processo é uma verdade funcional. Um exemplo está no mundo do futebol. Antigamente se dizia que somente chegaria a ser a melhor seleção do mundo aquela que atuasse no esquema chamado 4-3-3: quatro defensores, três jogadores de meio-campo e três atacantes.
Os que faziam tal afirmação apresentavam como prova o fato de as equipes campeãs mundiais até 1974 terem atuado no esquema 4-3-3. Até então, o Brasil havia ganho três Copas do Mundo. Ou seja, era como se a mecânica do futebol tivesse provado, por funcionamento, que esse era o melhor esquema tático, uma afirmação que pretendia ser uma verdade funcional.
As verdades funcionais (também chamadas de verdades técnicas) são comuns nos assuntos da tecnologia. Um especialista em aviação explica como um avião voa baseado nas leis da física e imensa série de processos técnicos; logo, sua explicação é uma verdade funcional, como provam os aviões que cruzam os céus todos os dias.
Em face desses quatro tipos de verdade – a factual, a derivada de crença, a resultante de gosto, a funcional –, nós corremos o risco de misturá-los e entrar em discussões infrutíferas, o que por si basta para substituirmos a teimosia pelo respeito às ideias e opiniões dos outros.
Na vida, temos de fazer muitas escolhas alheias à verdade factual, certa e definitiva. Ainda assim, nos vemos obrigados a escolher, pois a vida é complexa e somos desafiados o tempo todo a decidir sob crenças e gosto pessoal. Ser tolerante com as verdades dos outros é preciso, pois a mais radical das características humanas é a absoluta diferença individual.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos