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Encerrou-se finalmente em Lisboa a última “edição”, como se diz hoje, do mais espetacular festival de celebração ao conflito de interesses judiciais que existe atualmente no mundo. É uma coisa tão extraordinária que conseguiu ganhar a sua própria grife – “Gilmarpalooza”, contração de Gilmar Mendes e Lollapalooza, ou seja, de uma das estrelas do nosso STF e da grande quermesse mundial da música pop.
Não há nada de parecido no resto do planeta: uma conferência de cúpula entre juízes da “suprema corte” brasileira, gatos gordos do poder público nacional e empresários com causas a serem julgadas no mesmo tribunal habitado por esses juízes. Em qualquer democracia razoavelmente séria do mundo, uma exibição pública de incesto como o “Gilmarpalooza” seria recebida com gargalhadas e encaminhada ao arquivo nacional das ideias sem noção. No Brasil, é uma romaria sagrada de magnatas em busca da cura de seus problemas – e quem achar que não é fica automaticamente sujeito a ser denunciado como agente da extrema-direita, golpista e inimigo da democracia.
A parte mais tenebrosa dessa história, naturalmente, é juntar juízes e potenciais beneficiários de suas sentenças num óbvio evento de confraternização
O Gilmarpalooza deste ano também custou caro ao pagador de impostos – pelo menos 1 milhão e 300 mil reais, gastos na viagem e estadia de gente mais ou menos graúda do governo Lula que foi a Lisboa para meditar sobre “desafios, visões e diferentes modelos de sistemas jurídicos presentes em ambos os continentes a partir de perspectivas variadas”, segundo os organizadores.
É claro que a campeã dessa tremenda boca-livre foi a ministra da “Igualdade Racial”, Anielle Franco – além dela própria, levou quatro assessoras. É um enigma: o que a ministra, que não faz nada no Brasil, teria a fazer em Portugal num seminário com o título “Avanços e Recuos da Globalização e as Novas Fronteiras-Transformações Jurídicas, Políticas, Econômicas, Sócio-Ambientais e Digitais”? Mais misterioso ainda: por que ela precisaria de quatro assessoras para ajudá-la a ouvir palestras em Lisboa, se é que ouviu alguma?
Não há uma única coisa certa no Gilmarpalooza. Não é só o agressivo desperdício de dinheiro público – é bom lembrar, a propósito, que além da tropa lulista foram para lá 30 deputados, tudo pago com os impostos que arrancam todos os dias do seu bolso. É incompreensível, sobretudo, que o festival do ministro Gilmar tenha de ser feito em Lisboa. Por que isso? Todas as questões do seminário são brasileiras. Todos os que assistem são brasileiros. Todos os palestrantes são brasileiros – não há um único jurista internacional entre eles. Por que não fizeram o mesmo debate sobre os avanços e recuos da globalização etc. etc. etc. num hotel de Brasília? Pelo menos não se gastaria aí o dinheiro das passagens em classe executiva (ou mais) e em hotéis de luxo para o cardume oficial em Lisboa.
Não pode estar correto, definitivamente, o presidente do STF, ele mesmo, ter as suas despesas pagas pelos “organizadores do evento”. Não é dinheiro público, mas é pior – é de milionários que têm interesse direto na benevolência do STF. Mais: o diretor de cena, o ministro Gilmar, é sócio da faculdade particular de direito que organiza tudo.
A parte mais tenebrosa dessa história, naturalmente, é juntar juízes e potenciais beneficiários de suas sentenças num óbvio evento de confraternização. No caso do último Gilmarpalooza, havia pelos menos doze empresários – há listas que apontam quinze – com processos pendentes no STF, inclusive por crimes de corrupção processados na Lava Jato. Se isso não é conflito de interesse em primeiro grau, então o que seria?
O ministro Alexandre de Moraes, um dos astros do Gilmarpalooza, disse lá mesmo em Lisboa que o STF “não precisa” de um Código de Ética – segundo ele, os ministros já têm o máximo de ética que se pode encontrar num magistrado. Se é mesmo assim, e a quermesse de Lisboa? A revista portuguesa Sábado fez uma pergunta resumo sobre essa história. “Que diria de um juiz que andasse em almoços, jantares e eventos de charme com empresários que têm processos pendentes junto deste mesmo juiz?”, indagou ali o jornalista João Paulo Batalha. “Diria que estava a violar o seu mais elementar dever de reserva e recato, expondo-se a um conflito de interesses que põe em causa o seu julgamento.” Batalha, na verdade, falou mais do que isso. Mas assim já está bom, não é?
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos