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Por alguma razão que talvez só investigadores da alma brasileira com a pertinácia e a turbinagem mental de um Gilberto Freyre ou um Euclides da Cunha conseguiriam explicar, mas não explicaram, a cultura brasileira tem dificuldades frequentemente mortais com a matemática. A coisa não vai, simplesmente – não gostamos de fazer conta, essa é que é a verdade.
Seria algum desdobramento obscuro das tensões entre casa grande e senzala, talvez, ou uma reação tardia da notória nutrição deficiente das elites coloniais? Quem sabe uma consequência mal avaliada dos contrastes entre o sertanejo, um forte, e os mestiços neurastênicos do litoral? Vai saber. O fato é que o brasileiro é ruim na hora de mexer com a calculadora e conseguir pensar alguma coisa inteligente sobre o que apareceu na tela.
Um dos grandes clássicos do gênero está em cartaz neste preciso momento, com a apaixonada discussão, no mundo político, na mídia e nas mesas redondas da televisão, do “orçamento impositivo”. Você não entendeu muito bem, ou simplesmente não entendeu, o que é isso – e, sobretudo, se é bom, se é ruim ou se não é nada? Não se preocupe: muito pouca gente entendeu, e quem entendeu não está explicando.
Basicamente, trata-se de determinar, entre Congresso e Executivo, como, onde e por quem será gasta uma certa porção do orçamento federal de 2020 – e obviamente, quanto dinheiro público ficará bloqueado nisso.
Não é preciso ser nenhum gênio para ver que tanto os parlamentares quanto o governo querem, cada um do seu lado, mais dinheiro para si próprios. A disputa fica ainda mais evidente quando se sabe que a maior parte do orçamento da União, no linguajar em uso nas finanças públicas, é composto pela célebre “verba carimbada”: só pode ir para onde o carimbo manda que vá. Tanto para a folha de pagamento, tanto para a Previdência Social, tanto para esta ou aquela área específica. O resultado é que a parte realmente disponível para ser gasta a cada ano fica estreita – e quanto mais estreita, maior a briga.
Entra em cena, à essa altura, a atávica dificuldade brasileira com as operações aritméticas. É complicado: esse bloqueio, presente em todo o seu esplendor naquilo que sai publicado na mídia, acaba por tornar a questão toda incompreensível. Este ano, como se sabe, o Congresso está querendo, para aplicar nos projetos dos deputados e senadores, uma quantia inédita de dinheiro do orçamento. O presidente da República vetou parte das pretensões dos parlamentares – e agora vai se decidir se os seus vetos serão mantidos, derrubados ou valerão em parte. Pronto.
Congressistas falam em “choque de poderes”, “desafio ao Parlamento” e crise institucional”. Gente do governo fala que há uma conspiração no Congresso para criar uma espécie de “parlamentarismo branco” no país – seriam os políticos e partidos os que iriam realmente mandar no orçamento, uma anomalia em nosso regime presidencial.
O dinheiro envolvido na briga é de R$ 30 bilhões, que passariam a ser gastos segundo as decisões dos deputados e senadores. E o que são R$ 30 bilhões? Um número só quer dizer alguma coisa se comparado com outro; sozinho, pode muito bem não significar coisa nenhuma. No caso, pouco se diz ao público pagante que o orçamento de 2020 é de R$ 3,6 trilhões – e que a reforma tributária ora em cogitação pode envolver um total de até R$ 6 trilhões. E então: será que aqueles trintinha em relação aos quais tanto se grita seriam mesmo capazes de criar um regime “parlamentarista”, de qualquer cor, no Brasil?
Só o déficit previsto nas contas da União em 2020 (repetindo: só o déficit) é de quase R$ 125 bilhões – ou quatro vezes mais que toda a verba “impositiva” em torno da qual se descabelam políticos, governo, mídia e “especialistas”. Não gostou do número? Então experimente esses: serão R$ 95 bi para a Educação, R$ 125 bi para a Saúde, R$ 350 bi para a folha de pagamento do pessoal e a caminho dos R$ 700 bilhões para a Previdência.
Os R$ 30 bi, perto desses números, são outra coisa. Você pode continuar achando que é muito – ou que é pouco. Da mesma maneira, você pode achar que os R$ 2 bilhões extorquidos do contribuinte para o fundo eleitoral de 2020 são um roubo – e provavelmente são mesmo. Você pode até achar que não deveria haver nenhuma verba reservada aos projetos dos congressistas, por uma questão de princípio. Mas, em qualquer caso, a esperança de debater com lógica essa questão será igual a três vezes zero enquanto a matemática for proibida de entrar na sala.