| Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
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Na última semana, você deve ter se deparado com alguma notícia relacionada à tal “Abin paralela”. A questão tomou os noticiários por conta do levantamento do sigilo de uma série de documentos pelo STF. Como a representação da Polícia Federal, a decisão do ministro Alexandre de Moraes e a gravação de uma conversa, ocorrida no ano de 2020, entre o então presidente Jair Bolsonaro, os responsáveis pelo GSI e pela Abin. Além das advogadas do senador Flávio Bolsonaro, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach. 

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Também ganhou notoriedade o uso supostamente “ilegal” do sistema First Mile — uma solução tecnológica contratada pela Abin, durante o Governo Temer. Sua principal função seria a possibilidade de monitoramento da geolocalização de aparelhos celulares, em tempo real, desde que conectados a uma rede de dados.  

Diante da multiplicidade de notícias, e considerando que não atuei em nenhuma fase deste caso, debrucei-me sobre a fonte destas notícias: as quase duzentas páginas apresentadas pela Polícia Federal, em que a autoridade buscou demonstrar a necessidade de apreensões e prisões. 

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Já se adiante: uma conversa de WhatsApp entre dois agentes cedidos à Abin — um militar e um policial federal — é o maior elemento de prova a que a PF teve acesso. É nesse chat que se fundam os pedidos de busca e apreensão, prisão preventiva e outras medidas cautelares urgentes. 

A hipótese defendida pela PF se divide, em síntese, em três frentes delitivas: (i) a ilicitude do monitoramento de pessoas por meio do First Mile; (ii) atos de investigação, supostamente ilícitos, lançados contra autoridades dos três poderes; (iii) e o suposto vazamento das atividades investigativas, para o fim de compartilhamento, nas redes sociais, por integrantes do “gabinete do ódio”. 

Note-se que os itens “i” e “ii”, isoladamente, não bastariam para justificar a atuação exclusiva do STF, muito menos a prevenção do ministro Alexandre de Moraes. A Polícia Federal, todavia, criou nexo de causa de todo inusitado. Como algumas informações coletadas pela Abin foram divulgadas em redes sociais — ainda que com termos ou conclusões distintas —, então todos os “crimes” guardam relação com o inquérito das “milícias digitais”, a justificar a prevenção e a competência. 

Retomando o exame da representação, fato é que, com as informações disponibilizadas até então, a grande maioria das investigações relatadas pela PF se limita a diligências e levantamentos realizados com fulcro de dados públicos, sem uso da ferramenta First Mile.

O “monitoramento ilegal”, em outros tantos casos, não passa de uma presunção, sempre formada a partir das conversas de WhatsApp

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Um bom exemplo é o “monitoramento ilegal” do ministro Alexandre de Moraes, divulgado e compartilhado à exaustão, mas que, em verdade, limita-se ao compartilhamento de arquivos PDFs, por WhatsApp, de conteúdo desconhecido. Na mesma linha, a investigação do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que se funda, exclusivamente, em uma mensagem de WhatsApp, contendo menção a um relatório previamente realizado por um dos interlocutores. 

A grande novidade, desta feita, é a divulgação de uma reunião em que Jair Bolsonaro, os diretores do GSI e da Abin, além das advogadas do senador Flávio Bolsonaro, tratam de supostas irregularidades cometidas pelos auditores da Receita Federal na confecção do Relatório de Inteligência Fiscal. Cujo deu causa à investigação, quando foi possível identificar a atuação do Delegado Alexandre Ramagem indicando, em suma, que seria necessária a instauração de procedimento administrativo contra os auditores da receita. 

Em conclusão, ao considerar que tais investigações foram deflagradas “sem justificativa” plausível, a PF concluiu que, em tese, ao invés de cumprir e fazer cumprir as funções institucionais da Abin, os dois agentes teriam se valido de suas posições para obtenção de ganhos políticos.

Como a Abin é um órgão ligado à Presidência da República, estar-se-ia diante de uma organização criminosa, com a potencial participação de toda a cadeia de superiores hierárquicos. 

Após ler essas notícias, não encontrei quem respondesse, com um mínimo de profundidade, alguns questionamentos que, no meu entendimento, são imprescindíveis para formação de convencimento: o que é a Abin? Quem determina quem deve ser monitorado? Quem pode ser monitorado? Qual conduta, até o momento, pode ter configurado crime, e por quê? 

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Por partes

A Abin foi criada durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, em substituição ao Serviço Nacional de Informações. O SNI, por sua vez, foi criado em 1964, durante a ditadura, tendo como finalidade superintender e coordenar, em todo o território nacional, as atividades de informação e contrainformação, em particular as que interessem à Segurança Nacional.

Com diretrizes muito similares, a Lei n.º 9.883/99 institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do país, com a finalidade de fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de interesse nacional. A exemplo de seu antecessor, o SBI também adota medidas de inteligência e contrainteligência como medidas fundamentais — com a diferença de que salvaguarda os direitos e garantias individuais. 

A lei também criou a Agência Brasileira de Inteligência: um órgão da Presidência da República, responsável por planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do país. Suas atividades, por determinação legal, incluem planejamento e execução de ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o presidente da República. 

Ao longo do tempo, o funcionamento da agência foi regulamentado por meio de decretos do presidente da República. Na forma do (então vigente) Decreto n.º 10.445/2020, a Abin era vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, tendo como competência planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e à análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o presidente da República. Assim como produzir conhecimentos de Inteligência sobre ameaças e oportunidades (...) para fins de assessoramento ao processo decisório do país. 

Fundamentalmente, a Abin sucede um órgão de espionagem e, nas linhas de seu antecessor, está diretamente ligada ao presidente da República. Suas funções permanecem sendo atividades de inteligência e de contrainteligência — distanciando-se da espionagem, contudo, em decorrência da necessária observância às garantias Constitucionais. 

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Com este propósito, a Agência funciona para identificar e eliminar, dentre quaisquer pessoas próximas da Presidência ou dos chefes de Estado, quaisquer riscos à segurança nacional. 

É perfeitamente lógica a presunção de que, ao longo de sua atuação, a Abin irá envidar esforços maiores na investigação de opositores políticos do presidente, por serem mais propensos a uma tentativa de desestabilização das instituições pátrias

Antes de avançar para uma concisa reflexão jurídica, deixo um esclarecimento necessário: estas linhas não devem ser confundidas com um posicionamento jurídico-político, tampouco com uma opinião pessoal sobre a matéria. Meu único objetivo é apresentar uma reflexão jurídica imparcial, fundada em fatos e documentos públicos, e em precedentes do judiciário. 

Feitos todos esses esclarecimentos, volto às notícias mencionadas no começo do texto. 

A grande notícia dos últimos dias foi a divulgação do áudio de uma reunião realizada no ano de 2020, em que participaram o então presidente Jair Bolsonaro, o diretor do GSI (ao qual a Abin era vinculada), o diretor da Abin, as advogadas do senador Flávio Bolsonaro. Na ocasião, foram discutidas irregularidades orquestradas dentro do COAF, que poderiam representar nulidades em caso envolvendo o filho do presidente. 

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De um lado, há quem sustente que a reunião representaria desvio de finalidade, por todos os envolvidos, como se o presidente da República, o GSI e a Abin estivessem atuando — orquestrada e propositadamente — para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro. 

De outro, também se poderia defender a tese de que a Abin identificou uma organização criminosa instalada no COAF, que se valia de dados sigilosos para desestabilizar o Estado. Diante disso, adotou as medidas de contrainteligência necessárias para cessar o ilícito, e atraiu, como consequência inevitável, a anulação das investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, que se originaram nos relatórios fraudados pela ORCRIM. 

Não vou defender qualquer das teses, mas deixo questionamentos que, depois de muito ler sobre o assunto, não consegui ver respondidos: 

1) Há previsão legal de inviolabilidade de dados de geolocalização? Caso não exista, o uso do sistema First Mile configura qual crime em específico? Os responsáveis pela aquisição e uso do sistema durante a gestão anterior já foram incluídos nos inquéritos? 

2) Considerando a dependência entre os poderes e os regulamentos afetos à Abin, de que forma eventuais diligências de inteligência, envolvendo ministros ou deputados, poderia configurar crime? Este crime também seria configurado caso o Judiciário, de ofício, instaurasse inquéritos para processar e julgar membros do Executivo e do Legislativo?

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3) Diante dos inegáveis impactos no processo eleitoral, com qual objetivo foi levantado o sigilo de uma gravação realizada quatro anos atrás? Para quem defende a publicização, esse posicionamento também se aplica ao vazamento de dados ocorridos à época da Lava-Jato, com as consequências na opinião pública e no processo eleitoral?

4) A tese investigativa é de que o presidente teria se valido de sua posição política para defender os interesses de seu filho, nada obstante a fraude no COAF ter sido confirmada. Os crimes também se configurariam se ministros de uma Corte Suprema se valessem de suas influências para, em uma analogia hipotética, processarem e prenderem opositores pessoais?

5) O que justifica a competência do STF e a prevenção do Exmo. Min. Alexandre de Moraes para investigar e julgar a “Abin paralela”? A partir da informação de que o relator também foi alvo de investigação, o que justificaria sua manutenção na relatoria?

Defendo a livre manifestação de pensamentos, ideias e quaisquer críticas; defendo seu direito inviolável de tecer críticas a quem quer que seja, inclusive a mim. Mas não posso deixar de pedir que adotemos cautela nos posicionamentos jurídicos, sobretudo quando o assunto são investigações que contrariam o ordenamento jurídico, sob pena de estimularmos a perpetuação de excessos e, eventualmente, a abolição violenta do Estado Democrático de Direito. 

O excesso praticado contra seus opositores, ao fim e ao cabo, é uma violação ao Estado Democrático de Direito e às suas próprias garantias fundamentais. Hoje, geram engajamento e conteúdos virais; amanhã, serão praticados contra você ou os políticos que você apoia. Quando acontecer, não venha falar em ditadura.

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