| Foto: Joel Fotos/Reprodução/Pixabay
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A regulamentação da reforma tributária vem ganhando manchetes aqui na Gazeta do Povo, e a razão é simples: o Congresso começou a votar, em regime de urgência, a regulamentação da chamada reforma tributária - conhecida como Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023.

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Mas o que isso significa, na prática, e de que forma a nova regulamentação atinge cada setor da sociedade? Antes de nos aprofundarmos no assunto, precisamos entender o que já mudou - e o que está para mudar -; para então, nos artigos seguintes, tratarmos dos impactos diretos sobre os setores da economia ou profissionais. 

No Título VI da Constituição Federal de 1988, o legislador constituinte previu uma infinidade de tributos de competência da União, dos Estados, municípios e do Distrito Federal. 

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No artigo 145, a Constituição apresenta três grandes grupos de tributos: os impostos, as taxas (e/ou tarifas) e as contribuições de melhoria. Mais adiante, o artigo 149 prevê a possibilidade de a União Federal instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas - categoria em que se enquadram PIS e COFINS.

Taxas e tarifas são pagas em razão da disponibilização ou prestação de determinado serviço ao contribuinte, como a taxa de incêndio (paga independentemente do uso) e a tarifa de pedágio (paga mediante uso), respectivamente. O texto da reforma não atinge, de forma relevante, regras sobre este tipo de tributo.  

As contribuições de melhoria podem ser instituídas para custeio de obras ou aprimoramentos de infraestrutura, em geral. No texto da reforma, a única alteração se deu, justamente, no âmbito da contribuição mais discutida no judiciário: a chamada contribuição de iluminação pública, agora prevista e autorizada, expressamente, no texto da reforma já aprovada. 

Já os impostos - notadamente aqueles relacionados à cadeia de consumo - sofreram alterações significativas. Para melhor compreendê-las, todavia, importante repassar, em geral, quais impostos são atualmente praticados pelos entes federativos, assim como suas respectivas funções.

Numa primeira categorização, os impostos se dividem em reais e pessoais. Os pessoais têm como fato gerador determinada ação praticada por uma pessoa - física ou jurídica -; e os reais são aqueles que têm bens como objeto, como a propriedade de imóveis (IPTU/ITR) e automóveis (IPVA), ou a transmissão de bens imóveis (ITCMD/ITBI). 

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Neste aspecto, a reforma tributária traz mudanças pontuais - mas relevantes -, com objetivo de simplificação das obrigações fiscais e de se garantir maior segurança jurídica: 

a) O ITCMD passará a ser pago no local do domicílio da pessoa falecida ou do doador, ao invés de no local em que for processado o inventário. A alíquota será obrigatoriamente progressiva; ou seja: aumentará de acordo com o valor da doação ou transmissão causa mortis. Nos casos de doador ou de cujus com domicílio no exterior, haverá incidência do imposto - antes vedada pelo STF -. 

b) O IPVA incidirá sobre veículos terrestres, aquáticos e aéreos, e poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental. 

c) O IPTU poderá ter sua alíquota alterada por ato do prefeito, não sendo mais necessária, portanto, reforma legislativa.

Quanto à função, os tributos podem ser considerados (i) fiscais, quando destinados à arrecadação; (ii) extrafiscais, quando (também) têm a finalidade de regular determinado mercado ou acabar com anomalias econômicas; ou (iii) parafiscais, quando têm como objetivo a manutenção de uma entidade paraestatal - como a anuidade da OAB ou as contribuições sindicais.

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Como dito, os impostos extrafiscais, para além da arrecadação, têm o objetivo adicional de manutenção de um equilíbrio econômico adequado para a realidade em que se inserem. Nesta categoria se incluem os impostos de importação (II), exportação (IE), sobre produtos industrializados (IPI) e sobre operações de crédito (IOF), todos extrafiscais (porque suas alíquotas podem ser alteradas, independentemente de lei, para proteção ou correção de mercado), de competência da União. 

O IPI, em específico, merece comentários adicionais: seu caráter extrafiscal se revela em casos como a pandemia do COVID-19, quando produtos hospitalares precisavam de pronta redução das alíquotas, como forma de se garantir a rápida produção de que precisava o mercado. Entretanto, não se deve esquecer da forte presença da função fiscal; afinal, cuida-se do único imposto incidente sobre a criação/industrialização de produtos. 

Os impostos puramente fiscais têm como função a simples arrecadação de recursos, a fim de que o Estado possa desempenhar suas atividades. São bons exemplos o Imposto de Renda (IRPF/IRPJ), de competência da União; o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (“ICMS”), arrecadado pelos estados, além do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (“ISS” ou “ISSQN”) - cuja arrecadação compete aos municípios.

Fato é que toda empresa brasileira recolhe imposto de renda, PIS e Cofins, em alguma extensão. Além disso, se for (i) indústria, também recolherá o IPI (para a União); (ii) prestadora de serviços, também recolherá o ISS (para o município); (iii) comerciante, também recolherá o ICMS (para o estado). Aí é que se inicia o problema. 

Como exemplo, imagine-se uma cadeia de negócios simplificada: 

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(i) Determinada indústria desenvolve um processador para dispositivos móveis. Na venda deste componente a uma fabricante de smartphones, atrai a incidência de ICMS, PIS, COFINS e IPI. 

(ii) A fabricante de smartphones se vale dos processadores para desenvolver um novo produto; em seguida, vende o produto a redes atacadistas, atraindo incidência de ICMS, PIS, COFINS e IPI. 

(iii) A rede atacadista vende o produto para redes varejistas, atraindo a incidência de ICMS, PIS e COFINS - e, possivelmente, de IPI. 

O ICMS e o IPI são impostos “não-cumulativos”, como também podem ser o PIS e o COFINS. Por tanto, a cada novo pagamento dos tributos, o responsável paga a alíquota cheia, mas gera um crédito, em seu favor, da parcela que já havia sido paga anteriormente. O resultado é um verdadeiro emaranhado de manobras tributárias, nem sempre lícitas, destinadas à redução da carga de impostos de cada empresa na cadeia de consumo. 

Este é o principal objeto da reforma: simplificar as rotinas tributárias exigidas de cada participante da cadeia, a fim de que o imposto seja mais claro, menos burocrático, e apresente segurança jurídica suficiente para reduzir, substancialmente, as discussões no judiciário. 

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Em síntese, a Emenda Constitucional nº 132/2023 prevê a extinção progressiva do ICMS, ISS, PIS, COFINS - e o IPI, por sua natureza extrafiscal, seguirá admitido, mas terá sua alíquota reduzida a zero (exceto para a Zona Franca de Manaus). Para substituí-los, foi criado o chamado Imposto de Valor Agregado “Dual”: com uma só cobrança, serão recolhidos o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a ser dividido entre estados e municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), devida à União. 

A partir da vigência do novo modelo de cobrança, todos os integrantes da cadeia de consumo passarão a pagar o IVA devido naquela operação específica, com desconto imediato do IVA recolhido pelos antecessores. Não haverá mais, portanto, a engenharia tributária de otimização das bases de cálculos de PIS, COFINS, IPI e ICMS; mas sim, uma cobrança, efetivamente não-cumulativa. 

No mais, a EC 132/23 ainda prevê a possibilidade de instituição, por lei complementar, de um imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação de produtos prejudiciais à saúde e/ou ao meio ambiente. É o chamado Imposto Seletivo - ou, popularmente, o Imposto do Pecado. 

Apesar da aparente simplificação, a mudança implica na inevitável alteração da arrecadação dos estados e municípios.

De tão complexa, a transição só poderá ser considerada implementada em 2033 - quando serão efetivamente extintos e substituídos os impostos praticados atualmente

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Pior ainda, não há critérios que permitam antever, objetivamente, de que forma estes impostos impactarão a arrecadação atual dos estados (majoritariamente endividados) e dos municípios, razão por que não seria possível estabelecer critérios objetivos de divisão dos recursos destinados aos municípios (a parte do IBS que compõe o IVA). 

A despeito de se ter buscado manter, tanto quanto possível, a divisão entre os entes federativos, a solução idealizada para contornar-se o problema foi a criação de um Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços. Este será custeado com as receitas do próprio imposto e gerido por representantes de estados e municípios, cabendo-lhe definir as regras de repartição de parte relevante do IBS, além de outras competências. 

No total, a emenda constitucional prevê medidas de transição e escalonamento até o ano de 2097. Grande parte dessas regras dependerá de regulamentação por meio de lei complementar - exatamente o que se vem discutindo no congresso.  

Em conclusão, a reforma tributária (i) promove ajustes nos impostos incidentes sobre bens, com objetivo de simplificar e ampliar segurança jurídica; (ii) previu a extinção de 5 (cinco) impostos - IPI (com as ressalvas aqui mencionadas), ICMS, ISS, PIS e COFINS -, costumeiramente incidentes em cada fase da cadeia produtiva; (iii) prevê a instituição do IVA, que se subdivide entre CBS e IBS, em substituição aos outros e (iv) criou regras de transição que se estendem por várias décadas. 

O próximo passo é a definição de alíquotas, benefícios fiscais - para setores produtivos, classes profissionais e outros -, normas mais subsistentes de instituição dos tributos e do comitê, assim como outros tantos fatores destinados à lei complementar.

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A matéria não é nada fácil de tratar e dependerá de um grande comprometimento dos nossos congressistas para que, de fato, tenhamos um regramento claro e mais justo. 

Os olhos dos contribuintes devem estar voltados a esse tema. Nosso papel, como formadores de opinião, será informar e comunicar os riscos e benefícios desse novo modelo tributário.