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Esclarecimentos sobre a reforma tributária
| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Apresentei as noções gerais da reforma tributária em um artigo passado e os nossos leitores expuseram questionamentos para lá de pertinentes. 

Para rememorar: o Projeto de Lei Complementar nº 68/2024, que regulamenta trechos necessários para a vigência da chamada “reforma tributária”, já tramitou na Câmara dos Deputados. Em 19 de julho de 2024 foi encaminhado ao Senado, onde aguarda tramitação, deliberação e eventual aprovação.

Com suas aproximadas quatrocentas páginas, a lei complementar promete simplificar as rotinas tributárias nacionais. O modus operandi parece se assemelhar, sobremaneira, ao “arcabouço fiscal”, que acabou com o teto de gastos, sob a premissa de que o aumento das despesas seria condicionado ao incremento, na mesma proporção, da arrecadação. O resultado você já conhece: constantes revisões, para baixo, das metas de arrecadação, acompanhadas do aumento exponencial dos gastos públicos.

Enquanto a regulamentação tramita, entretanto, vou me debruçar um pouco mais sobre os textos já vigentes, com destaque para as perguntas e comentários feitos pelos leitores. Sintetizei os comentários ao primeiro artigo e, a seguir, passo às respostas. 

- O imposto será pago “por dentro” ou “por fora”? 

O artigo 156-A da Constituição estabelece critérios gerais que, por terem força constitucional, não poderão ser objeto de alteração, nem mesmo por lei complementar. Ou seja: a lei complementar poderá regulamentar, mas não poderá criar ou ampliar impostos; tampouco contrariar previsões constitucionais. 

Dentre esses critérios, destacam-se alguns dos incisos do artigo 156-A, §1º, capazes de sugerir de que forma será feito o pagamento do imposto (entre parênteses, incluí o texto do inciso respectivo): (vii) será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial; (ix) não integrará sua própria base de cálculo; (xiii) sempre que possível, terá seu valor informado, de forma específica, no respectivo documento fiscal. 

A conjunção desses incisos sugere que o imposto fará parte do preço final. Portanto, será cobrado “por dentro” do preço final; até porque, do contrário, seria absolutamente imprescindível o destaque do imposto na nota fiscal (e não “quando possível”). 

Adiante-se que os artigos 27 e seguintes do atual texto do PLP 68/24 confirmam esta hipótese. A toda evidência, o imposto fará parte do preço final cobrado do consumidor, e será pago, alternativamente: (i) pelo vendedor, mensalmente, tendo como base o acumulado naquele período; (ii) no mesmo ato do pagamento do serviço/produto, com sistema de split - caso em que o boleto será emitido com dois ou mais beneficiários, incluindo os destinatários dos impostos.

- Como será feita a transição entre os modelos?

Para o consumidor, o período de transição será de 2026 a 2033. Para os entes federativos, alguns efeitos só se perceberão nos anos de 2035 e 2077

Quanto aos 5% (cinco por cento) destinados aos entes com menores arrecadações, “lei complementar estabelecerá os critérios para a redução gradativa, entre 2078 e 2097” - último marco de transição da reforma tributária. 

O ano de 2026 será de preparação: a CBS será cobrada mediante aplicação da alíquota de 0,9% (nove décimos por cento); enquanto a alíquota do IBS será de 0,1%, revertendo-se o total da arrecadação para financiamento do Comitê Gestor do IBS e para compor o fundo de Compensação. Estes pagamentos poderão ser compensados com débitos de PIS/COFINS ou, na impossibilidade, ressarcidos ao contribuinte - desde que o requerimento seja feito em 6 (seis) meses. 

Um registro fora do tópico: de acordo com o texto atual da regulamentação, o optante pelo Simples Nacional, para ter direito aos créditos e compensações, deverá se valer de contabilidade nada simples, sob pena de pagar percentual a maior, que poderá ser compensado pelos próximos contribuintes na cadeia produtiva. 

A partir de 2027, a CBS será integralmente instituída; PIS/COFINS serão extintos e o IPI terá sua alíquota reduzida a zero, exceto para as empresas situadas na Zona Franca de Manaus. A alíquota da CBS será calculada de modo a manter a média de receita que a União aufere, atualmente, com os tributos extintos. 

Entre 2027 e 2028, o IBS manterá a alíquota de 0,1% - mas, a partir daí serão separadas as alíquotas de 0,05% para os estados e 0,05% para os municípios. Nesse ínterim, a CBS será reduzida em 0,1%, a fim de se manter inalterada, em tese, a carga tributária total do contribuinte. 

Entre 2029 e 2032, o ICMS e o ISS serão reduzidos, proporcionalmente, enquanto o IBS será aumentado, na mesma proporção. A exemplo da CBS, as alíquotas “de referência” do IBS serão fixadas com base nas médias de arrecadação dos estados e municípios. 

A partir de 2033, o ICMS e o ISS serão substituídos, em definitivo, pelo IBS, que terá suas alíquotas de referência fixadas com base nos resultados dos exercícios anteriores. Até lá, entretanto, os contribuintes precisarão lidar com rotinas contábeis ainda mais complexas.

- Quais os desdobramentos da centralização da arrecadação no Governo Federal, e como serão divididos os recursos entre estados e municípios?

A União receberá diretamente a parcela referente à CBS. Por outro lado, do total da arrecadação com o IBS, 90% (noventa por cento) serão divididos, automaticamente, na proporção de 75% (setenta e cinco por cento) para os estados e de 25% (vinte e cinco por cento) para os municípios, mas tão somente a partir do ano de 2077. 

Entre 2027 e 2077, parte relevante das receitas será detida e gerida pelo Comitê Gestor. O qual terá a missão de distribuir as receitas, de modo a garantir que os estados e municípios, tanto quanto possível, mantenham as médias de arrecadação que obtinham com o ICMS e o ISS. 

Em que pese ser inviável uma projeção minimamente sólida, fato é que a reforma culmina com o que já era esperado: a criação de mais um órgão estatal, à custa do contribuinte, a quem se atribui o poder de gerir receitas elevadíssimas. Este é o único desdobramento palpável; no mais, reservarei as conjecturas para as próximas colunas, com saúde e muita sorte, encerrarei esta série em 2077. 

- Apesar do discurso efusivo do Governo em sentido contrário, há chance de aumento dos impostos?

As regras aprovadas já apontam para uma elevada probabilidade de aumento de impostos. Seguindo a linha de não me aprofundar até que tenhamos uma regulamentação aprovada, rememoro que os estados e municípios poderão fixar as suas alíquotas em percentuais maiores que os “de referência”, sem qualquer trava ou desdobramento.

De fato, o projeto de regulamentação prevê um gatilho de redução de impostos, se acaso as alíquotas projetadas superarem as médias atualmente pagas pelo contribuinte, com as respectivas projeções até 2033. Se isso ocorrer, o Poder Executivo deverá propor ao Congresso Nacional que reduza as alíquotas. 

É dizer: se, por acaso e sorte, a média de impostos se mantiver até o ano de 2033, nada acontecerá; por outro lado, se a implementação da CBS e do IBS representar, em 2033, aumento da carga tributária média. O Presidente deverá propor uma redução (que poderia propor de qualquer forma) ao Congresso (que também poderia propô-la), visando o reequilíbrio do custo tributário. 

Em conclusão, apesar de ser impossível prever, de forma técnica e subsistente, um aumento ou redução da carga tributária, certo é que, assim como no arcabouço fiscal, o aumento de gastos é objetivamente previsto. Enquanto os gatilhos de redução de despesas (ou de impostos) são, ao que tudo indica, verdadeira jogada de marketing. 

- Seria possível a criação de um imposto único, incidente sobre transações financeiras?

Destaquei esta pergunta porque me deparo com ela, frequentemente, em rodas de conversas informais. A ideia é simples: se tudo está se tornando digital, por que não criar um imposto incidente sobre a circulação de recursos, em substituição aos outros? 

A ideia parece boa e, de fato, resultaria em simplificação absoluta dos processos tributários. Entretanto, o modelo não é factível, tampouco consonante com as garantias fundamentais e as regras gerais de arrecadação previstas na Constituição Federal - sobre os quais falei, superficialmente, no artigo passado.

Primeiro, arrisco afirmar que ainda estamos distantes de uma sociedade em que todos os recursos sejam transferidos de maneira eletrônica - se é que chegaremos a tanto

Mesmo que todo o dinheiro nacional fosse exclusivamente eletrônico, passaríamos a enfrentar novas modalidades de sonegação, com uso de meios alternativos de pagamento ou permuta. Com destaque para pedras preciosas e redes de blockchain não regulamentadas.

Segundo, relembro que a ideia não é exatamente nova. Lembram da CPMF? O próprio IOF, ainda vigente, é um imposto sobre operações financeiras, embora seu fato gerador seja mais restritivo do que aquela contribuição. Em ambos os casos, trata-se de uma forma prática de arrecadação que costuma ser mal vista pela sociedade, porquanto não vinculada a parâmetros ou justificativas de fácil compreensão. 

Terceiro, ao instituir um imposto único sobre a circulação de receitas, o Governo estaria, em verdade, desestimulando a transferência de recursos - e, a reboque, a prestação de serviços, o comércio e a circulação de riquezas, de modo geral. Como consequência, desestimularia o próprio crescimento da economia.  

- Como funcionará o cálculo dos impostos no caso de alíquotas diferenciadas incidirem dentro de uma mesma cadeia produtiva? 

Responderei a esta pergunta com a profundidade devida, tão logo seja aprovada a lei complementar que regulamenta a reforma tributária. De antemão, destaco que as previsões não são boas: a rigor, a “simplificação” seguirá as complexas rotinas já existentes para geração de créditos e/ou compensação do ICMS. 

Tudo indica que cada operação terá incidência de uma alíquota própria para aquela fase/produto/serviço. Ao final do mês, o contribuinte deverá apurar os créditos e/ou débitos a título de IBS/CBS, e, para tanto, deverá considerar não só os seus próprios pagamentos, como os impostos pagos ao longo da cadeia de consumo (como no ICMS ou no PIS/COFINS não cumulativos). Além daqueles pagos pelos responsáveis tributários (ex.: frete). 

O aparenta ser, no mínimo, tão complexo quanto os processos atuais. Tão logo seja aprovada a regulamentação, retomarei o tópico. 

 - Considerações finais

Os leitores foram precisos nos questionamentos, e algumas das respostas dependerão da aprovação da Lei Complementar nº 68/2024. Outras, entretanto, acredito ter esclarecido, como a multiplicidade de regimes e impostos até o ano de 2033, ou o provável aumento da carga tributária - ressalvada a aprovação de uma proposta legislativa de iniciativa do Poder Executivo. 

Estes cálculos não contam, é claro, com a incidência do Imposto Seletivo, que poderá incidir, de acordo com o texto atual do PLP nº 68/2024, sobre serviços e produtos relacionados a veículos, embarcações e aeronaves, fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, bens minerais, produtos de prognósticos e fantasy sport. 

Trocando em miúdos: ao longo deste mandato presidencial, e do imediatamente subsequente (2024-2028, 2028-2032), as alíquotas serão aplicadas sem qualquer limitação, possibilitando um incremento considerável na arrecadação. A distribuição destes recursos será decidida, em sua grande maioria, a um órgão criado e custeado pelo Governo Federal - até que o IBS tenha recursos para ressarcir a União e pagar suas próprias despesas. 

Independentemente do que ocorrer entre 2024 e 2032, caberá ao Presidente eleito em 2032, querer propor ao Congresso Nacional a redução da carga tributária. Nesta hipótese, precisará lidar com a redução de receitas ao longo do seu mandato. 

Lembro-me, vagamente, de um período em que os gastos públicos aumentaram desenfreadamente, enquanto as contas públicas foram contabilizadas de maneira criativa, para se prever uma operação superavitária - que ignorava o rombo da previdência, por exemplo, apesar dos inúmeros alertas do Tribunal de Contas da União. 

Projetando aquele período à realidade atual, seria possível imaginar que a reforma, em verdade, serviria para garantir aos chefes do executivo, neste e no próximo mandato, a ampliação ilimitada dos gastos públicos, deixando a fatura para que o Presidente eleito em 2032 pague? 

Mandem seus comentários e dúvidas! Até a publicação da lei complementar, seguirei debatendo o tema com base na Emenda Constitucional nº 132/2023.

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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