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As discussões sobre a fiscalização exercida pela Justiça Eleitoral vêm tomando as redes sociais. Por mais que o debate seja fundamental - defendo, como venho defendendo, um dever de cuidado - precisamos separar nossas opiniões pessoais do nosso posicionamento sobre a legalidade, no aspecto estritamente jurídico, dos assuntos que debatemos.
Nesse primeiro ensaio, vou buscar fazer uma análise jurídica sobre o tema, de um ponto de vista estritamente técnico – como devem fazer os juristas -. O objetivo deste artigo é identificar, com base na legislação eleitoral e na Constituição Federal, quais poderes foram atribuídos à Justiça Eleitoral – para que, no próximo artigo, possamos avaliar o que poderia configurar um eventual excesso .
Partindo da Constituição Federal, precisamos destacar duas premissas: (i) a União Federal tem competência privativa para legislar sobre direito eleitoral, nos termos do artigo 22, “I”; (ii) a organização da Justiça Eleitoral é objeto dos artigos 117 e seguintes, com destaque para a previsão do artigo 121: lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
Passados quase quarenta anos da promulgação da Constituição, a Lei Complementar que regulamentaria as competências da Justiça Eleitoral ainda não foi editada. Com isso, o TSE e o STF reconhecem que, na ausência dessa lei, o Tribunal Superior Eleitoral tem competência para criar normas “regulamentadoras” em matéria eleitoral.
À primeira vista, faz sentido. É só pensar que, no fim das contas, na condição de órgão máximo do judiciário eleitoral, o TSE precisaria, de qualquer forma, unificar seus entendimentos – como fazem o STJ e o STF nas suas súmulas, por exemplo -; e, como esses entendimentos são de observância obrigatória, não haveria motivo para se impedir a publicação de Resoluções com base na jurisprudência da Corte.
As competências da Justiça Eleitoral devem ser regulamentadas por uma lei complementar que, contudo, ainda não existe
Mas a verdade é que esta lacuna atrai um primeiro – e grave - problema do sistema eleitoral brasileiro: quem decide quais os limites da “regulamentação”? Se o próprio órgão decide que pode controlar a mídia e multar veículos de imprensa, quem exercerá o controle sobre essa atuação? A resposta seria, obviamente, o STF; mas se o Presidente e Vice-Presidente do TSE são do próprio STF, será que há controle efetivo?
No segundo passo, vamos às leis mais fundamentais para o processo eleitoral, a Lei nº 4.737, do ano de 1965 (Código Eleitoral). Já de começo, o artigo 1º prevê que o TSE expedirá instruções para sua fiel execução, mas o artigo 23-A, acrescido pela Lei nº 14.211/2021, limita esse poder de regulamentação a matérias especificamente autorizadas em lei.
O funcionamento do processo eleitoral, de seu turno, é regulamentado pela Lei nº 9.504/97, a chamada Lei das Eleições. No que importa ao tema, de acordo com o artigo 41, §1º, o poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais; tais atos, entretanto, são limitados pelo §2º: o poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.
Não é difícil perceber que a Lei das Eleições, criada em época muito distante do cenário de globalização em que vivemos, não foi redigida com foco no que era compartilhado em redes sociais. Basta perceber que a propaganda em jornais, televisão e outdoors, além de pesquisas, entrevistas, debates e direito de resposta são matérias regulamentadas, título a título, com precisão e objetividade, porque estão compatíveis com as campanhas eleitorais à época.
Ou seja: ao se deparar com uma denúncia anônima, por exemplo, o Juiz Eleitoral não só pode como deve adotar as medidas necessárias para remover um outdoor, porque a propaganda por meio de outdoor é objetivamente vedada pela legislação. Por outro lado, mesmo investido de poder de polícia, não tem legitimidade o juiz eleitoral para, de ofício, instaurar procedimento com a finalidade de impor multa pela veiculação de propaganda eleitoral em desacordo com a Lei nº 9.504/1997, nos termos da Súmula nº 18 do próprio TSE.
A partir de reformas realizadas em 2009, 2013 e 2017, a propaganda na internet passou a ser regulamentada, ainda que de maneira precária, por meio dos artigos 57-A a 57-J. Em absoluta coerência com o sistema eleitoral, incluiu-se o artigo 57-D, que garante a livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores – internet, assegurando o direito de resposta.
O parágrafo 3º do artigo 57-D, de forma inédita, previu a possibilidade de intervenção da Justiça Eleitoral para remoção de conteúdo na internet – e é, até a presente data, o único dispositivo a tratar do tema, ao menos em matéria eleitoral: Sem prejuízo das sanções civis e criminais aplicáveis ao responsável, a Justiça Eleitoral poderá determinar, por solicitação do ofendido, a retirada de publicações que contenham agressões ou ataques a candidatos em sítios da internet, inclusive redes sociais.
Há um problema grave: como definir quais agressões ou ataques a candidatos são passíveis de, por decisão judicial, serem retirados do ar? O que diferencia uma agressão de uma crítica contundente? Se o ataque se direcionar a agente que, comprovadamente, praticou crimes e causou prejuízo ao Estado, ainda assim, cabe a intervenção da Justiça Eleitoral? Se houver alegação de que a notícia é falsa, quem será responsável por definir o que é verdade?
Historicamente, em atenção às garantias constitucionais de liberdade de expressão, ampla defesa e contraditório, o judiciário sempre teve solução eficiente, inclusive na seara eleitoral: direito de resposta, indenização e, até mesmo, aplicação de penas restritivas de direitos ou de liberdade. Para tanto, repita-se, só se exige a observância ao devido processo legal – que se inicia com o ofensor e se encerra, depois de regular instrução, com decisão da Justiça -.
Em termos práticos: se candidato X, sem qualquer evidência, vale-se de uma rede social para atribuir um crime ao candidato Y, é possível que X seja condenado a (i) publicar a resposta de Y, no mesmo espaço e nas mesmas condições; (ii) pagar uma indenização a Y; (iii) cumprir penas restritivas de direitos ou de liberdade. Parece reparação suficiente, não é?
O artigo 57-D, entretanto, além de não definir o que são ataque ou agressão passíveis de intervenção judicial, admite a exclusão definitiva de determinada manifestação – ato conhecido como censura -, antes de instaurado o contraditório e garantida a defesa ao “ofensor” (mas nunca admitindo violações a estes princípios).
Ao final desse arrazoado, com base nas regras fixadas expressa e literalmente na legislação – ou seja, sem opinião pessoal ou interpretação -, podemos concluir que, no ordenamento jurídico vigente:
1) As competências da Justiça Eleitoral - fixadas, superficialmente, pela Constituição Federal – devem ser regulamentadas por uma lei complementar que, contudo, ainda não existe;
2) O Tribunal Superior Eleitoral deve regulamentar as normas para as eleições, desde que tais regulamentos não contrariem as previsões legais;
3) O Juiz Eleitoral (incluindo-se, aí, Desembargadores e Ministros que desempenhem as funções de fiscalização), investido de poder de polícia, pode atuar, independentemente da provocação processualmente adequada, para fazer cessar um ilícito eleitoral;
4) O Juiz Eleitoral não tem legitimidade para instaurar processo visando penalizar determinado candidato;
5) A remoção de conteúdos da internet é regulamentada pelo artigo 57-D da Lei nº 9.504/97, desde que presente a solicitação do ofendido.