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Como sempre defendo aqui na Gazeta, é extremamente importante que as discussões jurídicas sejam baseadas em técnica; assim como é fundamental que se reserve a discussão política aos políticos e, principalmente, à soberana população. Na condição de jurista, busco contribuir com as análises técnicas.
Em decisão datada de 30 de agosto de 2024, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão imediata, completa e integral do funcionamento do “X Brasil Internet LTDA” em território nacional. Também determinou a intimação da Anatel, Apple, Google, provedoras de internet e outras empresas, para que impeçam o acesso ao X no território nacional.
O cenário que levou à determinação, de acordo com a decisão, envolve:
(i) A discussão tem começo quando o X foi intimado para que, no prazo de 2 (duas) horas, procedesse ao bloqueio dos canais/perfis/contas indicados (...) sob pena de multa diária de R$50.000,00 (posteriormente majorada);
(ii) Noticiado o encerramento das operações do X no Brasil – com flagrante finalidade de ocultar-se do ordenamento jurídico brasileiro, foram bloqueadas as contas de empresas e pessoas ligadas ao X Brasil e, para cumprimento da multa (a esta altura, milionária), além das contas e ativos financeiros ligados à Starlink – diante da existência de um “grupo econômico de fato”;
(iii) O X foi intimado para constituir novo representante no Brasil, em 24 horas, sob pena de imediata suspensão das atividades da rede social X. Em razão do descumprimento, o Ministro proibiu o acesso à plataforma, além de aplicar multa diária de R$50.000,00 às pessoas naturais e jurídicas (...) utilização de subterfúgios tecnológicos (...) tal como uso de VPN.
Os fundamentos para o bloqueio, também com base na decisão, podem ser assim resumidos:
(i) O art. 19 do Marco Civil da Internet admite a responsabilização do provedor de aplicações de internet se, após ordem judicial específica (...) não tomar providências para (...) tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
(ii) O art. 997, VI, do Código Civil, estabelece que a constituição de qualquer sociedade deve indicar as pessoas naturais incumbidas da administração (...) pois os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros (...) (CC, art. 1016), pois a sociedade (...) procede judicialmente, por meio de administradores (CC, art. 1022).
(iii) mesmo a sociedade estrangeira (...) para poder atuar legalmente no Brasil, necessita de autorização prévia do governo federal, nos termos do art. 11, §2º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (...) com EXPRESSA COMPROVAÇÃO DE NOMEAÇÃO DE REPRESENTANTE NO BRASIL (CC, art. 1.134, §1º, V).
(iv) A indicação de representante no Brasil seria obrigatória por conta dos artigos 1.137 e 1.138 do código Civil, e dos artigos 86 e 171, §1º,d.a Lei nº 9.472/97.
(v) O X estaria promovendo uma manobra para se colocar às margens da Lei Brasileira às vésperas das eleições de 2024, o que potencializaria a propagação de fake News e dificultaria o controle judicial da informação;
Anoto que a decisão foi tomada na “Petição 12.404 Distrito Federal”, ligada à Pet. n. 12.100 – processo, por sua vez, foi distribuída ao Ministro Relator, sem sorteio, porque os fatos são ligados às “milícias digitais”. Ou seja: as decisões têm origem em um inquérito instaurado pelo próprio STF, sem previsão legal, distribuído sem sorteio, com base na criativa interpretação de um artigo do regimento do STF (e não na aplicação da Lei).
Aliás, como se demonstrou, não há como se pinçar a nomeação de um representante como obrigação isolada
A partir disso, sobrevieram infindáveis investigações, ordens de busca e apreensão, exclusão de postagens, perfis e pessoas das redes sociais, em meio a um processo instaurado pelo STF (figura do promotor), para apurar condutas que – alegadamente – envolvem o STF (figura da vítima), e que será julgado pelo STF (figura do Juiz).
É nesse meio que a decisão é tomada, em um processo sui generis/sem previsão legal, com ares de inquérito criminal, mas com fundamento em normas de direito constitucional, civil, do consumidor, regulatório, empresarial, no marco civil da internet e outros.
Vamos aos fatos e à análise jurídica, com base no texto expresso das leis – e não em interpretações ampliativas -. E, de começo, não poderia deixar de transcrever uma garantia constitucional das mais fundamentais, o princípio da legalidade: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da Constituição).
A Lei nº 9.472/97, que cria a ANATEL e define a competência da União para organizar a exploração dos serviços de telecomunicações, muito mais se aplicaria à Starlink do que ao X. Os artigos 86 (concessão de exploração de radiofrequência) e 171, §1º (operação de satélite estrangeiro) em nada se relacionam, obviamente, ao X – cuja atividade se obstou, por meio da decisão sob análise -.
Já o artigo 11 da lei de introdução às normas do Direito Brasileiro, as empresas obedecem à lei do Estado [no sentido amplo, como a figura de um país] em que se constituírem; e o §1º faz a ressalva de que não poderão, entretanto, ter no Brasil filiais, agências ou estabelecimentos antes de serem os atos constitutivos aprovados pelo Governo Brasileiro, ficando sujeitas à lei brasileira.
Se a própria decisão do STF reconhece, inequivocamente, a intenção do X de não ter mais estabelecimento no Brasil, então está resolvido: o X deve responder às leis do país em que for constituído – e nem se argumente que a norma, de 1942, teria sido criada com a intenção (a chamada mens legis) de atingir plataformas digitais -.
Passemos ao Código Civil.
O artigo 997 estabelece critérios gerais para constituição da pessoa jurídica no Brasil. O artigo 1.016, inserido no capítulo “da sociedade simples”, trata da responsabilização dos administradores perante a sociedade e os terceiros prejudicados enquanto o art. 1.022, do mesmo capítulo, prevê que a sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador.
Destaquei que ambos os dispositivos se inserem no Capítulo destinado às sociedades simples, e o art. 982 apresenta a definição de que precisamos: considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.
Sob qualquer enfoque, o X é uma sociedade empresária. É bem verdade que as sociedades limitadas podem se reger, nas omissões deste capítulo, pelas normas da sociedade simples [art. 1.052], como também pode haver regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima (parágrafo único).
De toda sorte, quanto aos dispositivos mencionados, há regra própria e especificamente aplicável (ao invés de omissão): a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas (art. 1.053); e o contrato mencionará, no que couber, as indicações do art. 997 (art. 1.054) – aquelas regras aplicáveis, em geral, às empresas que pretendam constituir pessoa jurídica brasileira.
Por fim, o artigo 1.134 veda o funcionamento de sociedade estrangeira no Brasil sem a autorização do Poder Executivo, exigindo a prova de nomeação do representante no Brasil, com poderes expressos para aceitar as condições exigidas para autorização. Acresço: o artigo 1.136 exige registro próprio do lugar em que se deva estabelecer, tudo a demonstrar a exigência legal de que a sociedade estrangeira, na verdade, constitua-se em território nacional.
Os artigos 1.134 e 1.136 não sofreram alterações desde a publicação do Código Civil (2002), e têm correspondência no Código Civil de 1916, como o artigo 20, parágrafo único: Dependem de aprovação do Governo Federal [executivo] os estatutos ou compromissos das sociedades estrangeiras por ações [empresas] e de intuitos não econômicos, para poderem funcionar no Brasil, (...) ficando sujeitas às leis e aos tribunais brasileiros.
As normas são absolutamente claras: para adquirir personalidade jurídica e estabelecer operações no território nacional, a empresa estrangeira precisa, primeiro, constituir-se, na forma da lei: registrar seus atos constitutivos, nomear seus representantes e administradores; integralizar ou depositar o capital social; apresentar endereço, objeto, qualificação dos sócios, além de uma infinidade de obrigações – dentre elas, a de ter um representante -.
Se a empresa não tiver operação no Brasil, entretanto, não se submeterá às leis nacionais – o que inclui a desnecessidade de ter representante no Brasil -.
Aliás, como se demonstrou, não há como se pinçar a nomeação de um representante como obrigação isolada. Ou se exige a constituição da empresa, com todas as obrigações afetas; ou se considera que a empresa não tem operação no Brasil e, por via de consequência, não precisa observar a lei nacional (nem nomear representante).
E se a empresa desenvolver atividades de Internet por meio de servidores, máquinas, pessoal e infraestrutura localizados, exclusivamente, em solo internacional? Para efeito de configuração de “operação no Brasil”, basta que ofereça um serviço passível de acesso por brasileiros? Sobretudo, que lei define quais serviços sujeitam o prestador de serviços internacional à constituição de pessoa jurídica no Brasil?
Não existe previsão legal. À luz do princípio da legalidade, não há como se obrigar o X a nomear um representante legal no Brasil, se as operações em solo nacional se encerraram. Da mesma forma, não há o que obrigue infindáveis empresas de jogos eletrônicos, vendas internacionais e outros prestadores de serviços frequentemente utilizados por brasileiros a nomear um representante nacional.
São inúmeros os exemplos que ratificam esta conclusão.
Por meio da Instrução Normativa nº 10, de fevereiro de 2020, do Ministério da Economia, a participação de estrangeiros em licitações nacionais passou a ser simplificada. Para negociar com o Governo Brasileiro, a empresa só precisaria fazer um cadastro e apresentar documentos, e, tão somente se contratada, precisaria constituir um representante no Brasil – porque, daí em diante, passaria a operar em solo nacional -.
A Turma de Uniformização dos Juizados Especiais do Distrito Federal definiu que, em compras internacionais, a Justiça Brasileira só será competente se o vendedor tiver representante em solo nacional, e a garantia do CDC, via de regra, não se aplicará – independentemente de o vendedor ter atividade aqui -. É dizer: não só a representação no Brasil é desnecessária, como o vendedor tem o direito de se defender nos limites da legislação a que é vinculado.
Mais grave ainda, o entendimento adotado na decisão em análise ameaça a segurança jurídica dos contratos de importação envolvendo pessoas físicas ou jurídicas, ao se considerar que, a partir deste precedente, é igualmente exigível que exportadores estrangeiros, tão somente porque oferecem produtos ao Brasil (e a todos os outros países do mundo, por meio da internet), submetem-se às regras do Código Civil, independentemente de não operarem no Brasil.
Por fim, entendo que você pode considerar que o X desafiou uma determinação judicial e, por conseguinte, a soberania nacional. De igual forma, é válida a opinião de que o X, em verdade, agiu corretamente ao partir em defesa da liberdade de expressão.
Há uma conclusão, contudo, que, para além de não ser válida, contribui para o avanço de um ambiente verdadeiramente antidemocrático: a de que o Judiciário pode invadir a competência do legislativo e exigir, de uma empresa selecionada a dedo, o cumprimento de regras comprovadamente inexistentes na legislação.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima