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Os últimos dias nos trouxeram uma sequência de eventos que merece nossa atenção. A Instrução Normativa RFB nº 2.219, que ampliava consideravelmente o monitoramento das movimentações financeiras dos brasileiros, foi revogada após intensa mobilização da sociedade. O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, anunciou a decisão após reunião com o presidente Lula. No entanto, a Advocacia-Geral da União informou que solicitará à Polícia Federal a investigação dos responsáveis pelo que chamou de "desordem informacional".
Na minha experiência como advogada, tenho observado com crescente preocupação como o Estado brasileiro tem expandido seu controle sobre a vida dos cidadãos, especialmente no debate público. Esta nova investida - classificar críticas legítimas como "desordem informacional" - reflete um padrão preocupante: o tratamento claramente distinto conferido a diferentes grupos quando se manifestam no espaço público.
As críticas à instrução normativa revogada eram - e continuam sendo - fundamentadas tanto em seu impacto social quanto em sua fragilidade jurídica. Para entendermos a dimensão do problema social, vamos imaginar uma situação comum: um motorista de aplicativo que movimenta R$ 5 mil por mês. Pode parecer muito, mas façamos as contas: combustível, prestação do carro, seguro, manutenção e despesas pessoais básicas. Mesmo que no fim do mês sobre muito pouco na conta, ele já teria entrado no radar da nova normativa. O mesmo vale para milhares de brasileiros que trabalham na economia informal - não por escolha, mas por necessidade.
Do ponto de vista jurídico, a crítica é igualmente legítima: o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o acesso a dados bancários pelo Fisco precisa de lei específica, como a Lei Complementar 105/2001. A normativa revogada ia muito além, criando novas obrigações por meio de uma simples instrução normativa - algo que, em direito tributário, não é permitido.
Esta nova investida - classificar críticas legítimas como "desordem informacional" - reflete um padrão preocupante: o tratamento claramente distinto conferido a diferentes grupos quando se manifestam no espaço público
O que torna essa situação ainda mais preocupante é o contexto mais amplo em que ela se insere. Tenho visto, na prática da advocacia, que pessoas públicas de determinado espectro político são frequentemente condenadas ao pagamento de vultosas indenizações por suas manifestações, enquanto acusações sem fundamento dirigidas contra elas recebem tratamento jurídico diferenciado, com reconhecimento de imunidades ou de circunstâncias que afastam a responsabilização. Esta disparidade não é mera impressão: são casos concretos que evidenciam um padrão sistemático.
É neste contexto que precisamos analisar o anúncio da AGU sobre a investigação da "desordem informacional". Em minha carreira jurídica advogando na defesa de direitos fundamentais, aprendi que termos vagos em direito podem ser perigosos. Afinal, quem decide o que é "desordem" e o que é debate legítimo?
A transparência invocada como justificativa para a instrução normativa é, de fato, um valor fundamental, mas precisa ser uma via de mão dupla. Enquanto se exigia transparência compulsória das movimentações financeiras do cidadão comum, o próprio governo resistia em dar publicidade aos gastos e à gestão de empresas públicas. Esta contradição se reflete também no tratamento do debate público: determinadas manifestações são rigorosamente escrutinadas e punidas, enquanto outras, mesmo quando carecem de fundamentação factual, são tratadas com notável leniência pelo sistema de fiscalização e justiça.
O momento exige atenção redobrada da sociedade e da comunidade jurídica. A normalização de mecanismos de controle do discurso, mesmo quando bem-intencionados, representa um risco grave à democracia.
A experiência nos mostra que, uma vez estabelecidos, mecanismos de controle raramente são desfeitos - eles apenas se expandem. Por isso, precisamos estar vigilantes não apenas quanto ao destino de nossas informações bancárias, mas principalmente quanto à preservação de nosso direito fundamental de questionar e debater as decisões que afetam nossas vidas, sem medo de represálias judiciais seletivas.
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