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Os acordos de não persecução penal ofertados pelo STF aos presos de 8 de janeiro: um olhar garantista 
| Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O dia 8 de janeiro de 2023 marcou o que foi descrito por muitos como uma tentativa de golpe de Estado no Brasil, quando parcela dos manifestantes invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes em Brasília. No entanto, ao observar os fatos com mais cautela, é possível perceber que a gravidade do ocorrido foi inflacionada, especialmente por parte do Judiciário e da mídia. O que vimos naquele dia não foi uma articulação política complexa ou uma ação organizada com o objetivo de tomar o poder, mas sim atos de vandalismo praticados por uma minoria desordeira, que deveria, obviamente, responder por seus atos. 

Manifestar-se pacificamente é um direito constitucional garantido, e as ações de alguns poucos não podem ser confundidas com uma tentativa golpista. O exagero nas imputações e a busca por enquadrar os atos como crimes políticos levantam sérias preocupações sobre o papel que o Supremo Tribunal Federal está desempenhando. Acredito que com o tempo, o próprio Tribunal venha reconhecer esse episódio como um erro histórico.  

Muitas pessoas que foram presas nesse episódio estavam participando de uma manifestação pacífica e nada tiveram com os atos depredatórios e invasões, muito menos se associaram a grupos com o objetivo – risível – de praticar um golpe de Estado. 

Vale lembrar que dentre as 2.151 pessoas que foram presas, a maioria foi recolhida no dia 9 de janeiro, ou seja, no dia seguinte aos atos que depredaram prédios públicos.  

Imagine a situação de pessoas que estavam acampadas ou apenas circulavam na região e nada tinham a ver com qualquer ato supostamente ilícito e foram detidas com a justificativa que faziam parte de uma articulação golpista. Parece absurdo, mas foi exatamente isso que aconteceu. Temos notícias de morador de rua, ambulante e advogada que estava lá para oferecer serviços às famílias dos detidos que foram presos. Até mesmo crianças foram recolhidas pelos veículos da Polícia Federal juntamente com seus familiares.    

Já tivemos manifestações, inclusive após a citada, que resultaram em depredação do patrimônio público, mas jamais com a mesma represália judicial e midiática.  

Importante ressaltar que para que seja possível caracterizar um golpe de Estado seria necessário identificar um grupo organizado e liderado pelas Forças Armadas com o uso de tanques e armas letais. Até mesmo o dia escolhido não deveria ser um domingo, quando os prédios públicos estão vazios e não haveria como os militares prenderem as autoridades públicas. Somente por esses simples fatos se mostra forçada a narrativa de tentativa golpe. 

Civis insatisfeitos com o resultado eleitoral não poderiam aplicar um golpe.  

Não podemos negar que ali estiveram presentes pessoas com o claro intuito de invadir prédios públicos e depredar o nosso patrimônio, o que deve ser penalizado com o rigor da lei. 

E justamente buscando a aplicação da lei, é que deveriam ser responsabilizados pelo crime de depredação do patrimônio público, pelo juízo competente, que não é o Supremo Tribunal Federal.   

No nosso sistema jamais poderíamos admitir que essa situação viesse a ser apurada através de um inquérito instaurado pelo juízo incompetente, com vício na sua distribuição e com vários outros artifícios não comuns. Eu poderia discorrer um artigo inteiro apenas para detalhar o quanto há de ilegal nessa operação.   

Contudo, após avaliar o resultado até o presente momento, de acordo com o que está sendo divulgado pela imprensa, em que 600 pessoas já aceitaram o acordo de não persecução penal, 200 foram condenadas e talvez menos de uma dezena foi absolvida, restando, ainda, mais 600 presos para serem julgados, podemos concluir que quase todos deverão ser condenados, o que reforça a necessidade de firmar o acordo de não persecução penal.  

Não estamos, aqui, avaliando as condutas praticadas por cada manifestante e muito menos incentivando que não exerçam o seu direito de defesa, mas, diante das circunstâncias, precisamos buscar uma solução menos danosa, que venha a estancar essas prisões, o que, a meu ver, seria pela adesão ao acordo de não persecução penal, previstos no artigo 28-A do Código de Processo Penal, já que é uma resolução mais rápida e eficaz.

No nosso sistema jamais poderíamos admitir que essa situação viesse a ser apurada através de um inquérito instaurado pelo juízo incompetente, com vício na sua distribuição e com vários outros artifícios não comuns

Para o Superior Tribunal de Justiça é possível a oferta do acordo de não persecução penal sem a admissão da prática do delito. Isso porque, quando do julgamento do HC 657.165/RJ, de 9.8.2022, o relator, ministro Rogério Schietti, definiu o instituto como "uma maneira consensual de alcançar resposta penal mais célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com inexorável redução das demandas judiciais criminais". 

Por esse entendimento, o acordo de não persecução penal não se propõe especificamente a beneficiar o réu, mas sim a justiça criminal de forma integral, visto que tanto ele quanto o Estado renunciam a direitos ou pretensões em troca de alguma vantagem. Assim, o Estado não obtém a condenação penal em troca de antecipação e certeza da resposta punitiva. Já o réu deixa de provar sua inocência, "em troca de evitar o processo, suas cerimônias degradantes e a eventual sujeição a uma pena privativa de liberdade". 

Apesar de notícias na imprensa de que os presos estariam obrigados a assumir a prática de golpe para firmar o acordo de não persecução penal, o documento não explicita isso, vindo a ressaltar que o compromissário “tem notadamente o direito ao silêncio e à não autoincriminação, bem como sobre o conteúdo e as consequências previstas neste acordo”, relacionando em seguida as condutas por ele praticadas, fato esse que pode ser ajustado de acordo com a participação de cada manifestante. Eu não tive acesso a todos os acordos de não persecução penal já oferecidos, mas ao que tive acesso, os termos ali propostos são bem razoáveis e não justificariam a recusa.  

Alguns advogados, ao que parece, estão alimentando a esperança de uma possível anistia entre os investigados. Tal postura, além de desleal — pois essa anistia pode nunca ocorrer —, é desumana, por desconsiderar o sofrimento pelo qual essas pessoas e seus familiares estão passando. Penso especialmente na saúde dos idosos e no impacto sobre as crianças, que estão crescendo afastadas de seus pais. Esse caso me deixa mais sensível, pois não estamos tratando de homicidas, pedófilos ou traficantes, mas de cidadãos comuns que participaram de uma manifestação contra um governo do qual discordam. São pessoas, na maioria, sem antecedentes criminais, que poderiam responder em liberdade sem oferecer dano algum à sociedade.

Alguns advogados, ao que parece, estão alimentando a esperança de uma possível anistia entre os investigados. Tal postura, além de desleal — pois essa anistia pode nunca ocorrer —, é desumana

Sobre essa recusa ao acordo de não persecução penal, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, em sessão do último dia 18, afirmou que "parece claramente uma manifestação ideológica de permanecer preso, ser condenado, no lugar de aceitar uma proposta de acordo que me parece bastante moderada" e completou, “fica renovada a oferta. Mais de 600 pessoas preferem responder à ação penal em lugar de aceitar um acordo de bases moderadas, oferecidas pela Procuradoria-Geral da República". Essa declaração deve ser vista sob uma ótica técnica e não política. 

Para que fique mais claro, os termos dos acordos de não persecução penal oferecidos pelo Supremo Tribunal Federal aos presos dos atos de 8 de janeiro incluem algumas condições específicas, que variam conforme a gravidade do envolvimento dos detidos. De maneira geral, os principais termos divulgados são: prestação de serviços à comunidade, pagamento de multas (no documento que tive acesso a multa foi fixada em R$ 5.000,00); indenização no caso de dano comprovado; proibição de participação em redes sociais abertas; proibição de participar de manifestações que possam ser consideradas antidemocráticas ou que incitem a violência; curso de formação política; monitoramento por tornozeleira eletrônica; e/ou restrições de circulação em locais públicos. 

A meu ver, precisamos avaliar as razões dessa recusa. Será que os presos tiveram acesso aos termos da proposta e puderam ler de uma forma que entendessem suas implicações? Eu acredito que não. 

Aos que acompanham a minha coluna sabem que busco trazer informações respaldadas na verdade real e minha opinião é técnica, não buscando agradar ninguém, mas apenas apresentar meus pensamentos para que, justamente, possamos entender o cenário jurídico e político de forma responsável. 

Tenho diversas críticas sobre a forma da condução desses inquéritos, mas não consigo entender, de outra parte, a recusa do acordo de não persecução penal.  

De maneira hipotética, vamos imaginar que os manifestantes que participaram dos atos no dia 8 de janeiro tivessem que confirmar que participaram de um golpe ou então praticaram um crime que não cometeram para receber esse benefício. Se isso fosse a condição para estarem em suas casas e com seus familiares, em segurança, não seria uma ideia a ser descartada. Entenda. 

No julgamento do HC 756907/SP, realizado na sessão de 13.7.2022, também tendo como relator o ministro do STJ, Rogerio Schietti, se firmou o entendimento de que a sentença condenatória que reconheceu a autoria delitiva exclusivamente com lastro em elementos produzidos na fase extrajudicial, especialmente na confissão do acusado feita no acordo de não persecução penal (ANPP), não confirmada durante a instrução criminal, deveria ser reformada, impondo a absolvição do acusado. Ou seja, caso não haja prova da prática delitiva durante a instrução processual, a confirmação da prática de golpe ou outro crime no acordo deve ser descartada, podendo ser reformada a condenação. Assim, os presos que firmarem o acordo poderão, em momento oportuno, rediscutir a matéria. 

Os termos do acordo de não persecução preveem algumas condições que podem ser questionáveis. Não tem sentido num estado democrático de direito cidadãos serem proibidos de manterem redes sociais, mesmo sem conteúdo político ou ilegal.  

Outro exemplo é a exigência de participação de um curso de 12h sobre “Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado”. Esse curso, que a princípio parece uma tentativa de reeducação cívica, pode ser interpretado como uma forma de doutrinação ideológica. A imposição dessas aulas levanta uma questão fundamental: estamos tratando de justiça ou de uma forma de reconfigurar a percepção política dos acusados? Sob essa ótica, tais medidas se assemelham a uma "lavagem cerebral", destinada a modificar as convicções de indivíduos que, em muitos casos, participaram apenas de uma manifestação e não de atos de vandalismo ou depredação. Por mais que não seja o ideal, ainda é muito melhor do que cumprir uma sentença de prisão de 17 anos. 

Defendo que o papel da justiça é assegurar que os direitos fundamentais dos cidadãos sejam respeitados. No processo penal, independente do crime a ser tratado, deve ser protegido, com todo o rigor, o princípio da presunção de inocência, a necessidade de provas concretas e a proporcionalidade das penas. Não podemos conceber que qualquer contexto político sirva para interferir no sentimento de justiça. Meu desejo é que todas essas pessoas possam ter um julgamento adequado, e que possam se beneficiar de todas as garantias previstas em lei, sem qualquer meio que lhes causem maiores privações. 

Reconheço que não estamos tratando de uma situação ideal, e há muitos aspectos com os quais não concordo. No entanto, neste caso, prevalece a máxima: dos males, o menor.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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