Oficialmente foi um incidente. O vazamento da transmissão ao vivo de uma reunião entre o presidente da Argentina Alberto Fernández e seu homólogo russo Vladimir Putin expôs o momento em que o argentino disse ser preciso substituir a liderança dos Estados Unidos por outros sócios, inclusive a Rússia. Os jornalistas que aguardavam do lado de fora da sala ganharam a informação de presente por causa de um suposto descuido dos assessores do Kremlin. O caso foi tão “acidental” que uma das várias estatais russas de informação fez o favor de distribuir para o mundo o trecho mais quente e para ajudar acrescentou com legendas, inclusive em português. Incidentes...
Muitas vezes evitando encarar o interlocutor, como se buscasse as ideias pelo chão, Fernández reclamou do Fundo Monetário Internacional (FMI) e sentou a borduna dos Estados Unidos. Como de praxe, repetiu a ladainha de que a culpa da crise argentina é do FMI e transfere para os americanos a responsabilidade pela dívida de seu país.
A edição feita pelos russos e distribuída pelos seus canais oficiais mostra um Putin silencioso, quase sonolento, que observa o argentino sugerindo – quase implorando – que a Rússia faça parte do novo azimute para os argentinos. “A Argentina vive uma situação muito especial. Produto de seu endividamento (...). Desde os anos 90, a Argentina focou sua visão nos Estados Unidos e economia argentina depende muito da dívida que tem com os Estados Unidos.” Em outro trecho ele diz: “Estou convencido de que a Argentina tem que sair dessa grande dependência que tem com o FMI os Estados Unidos. Tem que se abrir para outros lados e aí que a Rússia tem um lugar muito importante.”
Fernández desembarcou em uma Rússia conturbada. Mas não chegou com a bagagem vazia de instabilidades. E não estamos falando da economia e de seu desgosto com os americanos.
A Argentina não está mudando o centro de gravidade apenas na economia. Movimentos recentes mostram que eles podem estar fazendo uma aposta militar. Recentemente, o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, fez uma queixa ao Brasil. Segundo sua missiva, revelada pela revista Crusoé, “a Argentina apreciará se o governo brasileiro procurar restringir a concessão de permissão para aeronaves militares britânicas provenientes ou com destino às Ilhas Malvinas”.
O Reino Unido é um dos problemas para os planos expansionistas de Putin. Um dos países mais poderosos da Otan, é um aliado historicamente incondicional dos Estados Unidos.
Ajudar a Argentina a elevar a temperatura na América do Sul, em torno da irremediável disputa pelas Malvinas, pode ser um instrumento de diversionismo e de estratégia. Os chineses já estão militarmente presentes por lá desde 2015, camuflados em uma base militar disfarçada de pesquisa espacial. Recentemente, passaram a financiar uma estrutura na Patagônia que permitirá aos argentinos ampliar sua presença na Antártida – em uma clara resposta aos britânicos, que também ampliam sua presença naquela parte do planeta.
Por mais insólito que possa parecer, a aproximação da Rússia pode ter um link Malvinas-Ucrânia, no qual a Argentina entrou no jogo para ajudar a espraiar a crise.
No fim do mês, o presidente Jair Bolsonaro também irá a Moscou. Ele se sentará na mesma poltroninha na qual Alberto Fernández foi o protagonista do suposto incidente que serve de alerta para o brasileiro. O “incidente” com o argentino pode ter sido providencial para o brasileiro. É uma incursão que não permite deslizes ou, muito menos, brincadeiras.
No mesmo dia em que Fernández teve seu vídeo distribuído pelos canais russos, Jair Bolsonaro desembarcou na floresta amazônica para se reunir com o peruano Jose Pedro Castillo. Entre apertos de mão e abraços, Bolsonaro posou com o chapelão “Pepe Legal” de Castillo. A imagem foi distribuída pelo governo peruano, que depois a apagou de sua página oficial. Um incidente da real realpolitik capaz de atingir em cheio a parte mais fundamentalista de qualquer matiz política, que tende a não suportar. Por mais que os seguidores mais fiéis de Bolsonaro encontrem justificativa para tudo, vê-lo fantasiado com o sombrero do vizinho marxista não é algo que deve sair impune.
É evidente que o Brasil deve estreitar seus laços com Peru e Rússia, para ficar apenas nos dois casos. O potencial do país de Castillo para impulsionar nossa economia é diminuto. A Rússia tem uma economia menor que a dos estados da Califórnia, Texas e Nova York. Tem, inclusive, um PIB abaixo do brasileiro. Está bem longe dos poderosos Estados Unidos e China, mas é um parceiro bem importante. Ainda mais relevante por ser uma fonte de um insumo cada vez mais restrito no mercado e que faz do Brasil um refém: fertilizantes. Talvez essa seja a principal razão da viagem de Bolsonaro a Moscou. Buscar formas de ampliar o fornecimento de fertilizantes ao Brasil, ainda que seja por meio de uma incursão por um terreno minado.
Apenas um dia antes, moradores de um condomínio de Guayaquil registraram em vídeo uma operação de resgate dos bombeiros locais. Depois de arremessar vários objetos de sua janela, no 17º andar do edifício, um homem usando apenas bermudas gritava frases desconexas e prometia se jogar. Foram horas assim.
Uma operação de resgate foi montada no topo do edifício. Dois homens paramentados e atados pelas costas estavam a postos para o bote. Aquela famosa descida de rapel acompanhada por um assalto sobre o suicida, de forma a empurrá-lo para dentro do imóvel e assim contê-lo.
Na hora H, quando o bombeiro se lançou para o salto salvador, ele ficou enroscado na corda e se chocou contra a parede. Pendurado de ponta-cabeça, ele viu o homem se debruçar no parapeito e cair.
A vítima era um venezuelano. Pelos jornais equatorianos, não é possível saber nada além de sua nacionalidade e prenome. Anthony se matou por razões não reveladas, mas morreu como a metáfora de seu país. Vítima de seus próprios problemas, mas também dos erros de quem se prestou a tentar salvá-lo.
A Venezuela é um país que passou os últimos anos pendurado na janela. Seu povo gritou por socorro. O resgate nunca veio. Talvez tenha até subido no telhado, mas ficou enroscado de ponta-cabeça sem jamais triscar sequer na janela pela qual a ditadura empurra o país inteiro, a cada dia um pouco mais. O regime – que não opera sozinho, mas com o suporte irrestrito dos chineses e russos que avançam na América Latina – sempre soube tirar vantagem das derrapagens de quem se apresentou para resgatar o país.