A ex-presidente Dilma Rousseff é reconhecida pelo seu pensamento tortuoso. Em um vídeo gravado em 2020, e somente divulgado em agosto deste ano, Dilma não conseguiu fugir da regra. Mas, desta vez, ela demonstrou ser muito mais capaz de se comunicar do que o costume. Dilma deu uma aula na Escola de Estudos Latino-Americanos e Globais – uma plataforma on-line fundada pelo Grupo de Puebla (GP), que vem a ser uma espécie de Foro de São Paulo de sapatênis – na qual ela fala das relações da América Latina com os Estados Unidos e a China.
Uma frase de Dilma ganhou destaque. Ela disse que o lugar da América Latina “não é com os Estados Unidos”. Ela acha “que nosso lado é ser com a China”. Assim, simplesmente assim e aos 45 minutos do segundo tempo, quando o coordenador do GP, o chileno e eterno presidenciável socialista, Marco Enríquez-Ominami, já se preparava para encerrar o evento.
O grand finale de Dilma escondeu o fundamental. Por mais de uma hora a ex-presidente dá pistas, faz afirmações claras (acreditem) e descreve como vê a China, os Estados Unidos e o papel da região na relação com as duas potências.
Dilma classifica como vitorioso o manejo chinês das ferramentas de soft power ao longo da pandemia de Covid-19. Lista como o regime de Xi Jinping conseguiu ocupar os espaços deixados pelos Estados Unidos que, na administração Trump, vinham se afastando do sistema multilateral. Vazio que se agravou com a pandemia e serviu para Pequim redesenhar as relações internacionais. Frente à “fantástica incompetência dos Estados Unidos”, a China conquistou a simpatia de muitos países por oferecer um modelo de “desenvolvimento compartilhado”.
Mostrando uma familiaridade sobrenatural com o conceito, Dilma ensinou: “O soft power é igual a beleza. Está nos olhos de quem vê”. E os Estados Unidos estão ficando feios.
A ex-presidente brasileira fez questão de percorrer o caminho do sucesso chinês. Relembrou que o país enviou e patrocinou milhões de estudantes que frequentaram as melhores universidades do planeta, a maioria delas nos Estados Unidos. Segundo ela, para criar uma base poderosa para o desenvolvimento científico e “inovação”. Hoje se sabe que foi uma grande estratégia de roubo de conhecimento e informação que serviu para a China economizar anos de pesquisa e desenvolvimento científico. Um processo de pirataria acadêmica sem precedentes.
Parece que ela não concorda que estamos vivendo uma Guerra Fria 2.0. Dilma entende que os Estados Unidos já perderam. Que ao contrário da relação com a extinta União Soviética (URSS) que tinha um modelo econômico estanque, isolado do ocidente por uma cortina de ferro, o Ocidente é sinodependente. Por arrogância, afirma Dilma, os Estados Unidos não viram emergir uma potência, que até 2030 se tornará a maior do planeta. Processo que deverá ser acelerado pelos evidentes benefícios que a pandemia trouxe para China, relembra ela.
Ainda em relação à extinta URSS, Dilma destaca outras diferenças que ela considera como resultado do aprendizado chinês ao assistir o colapso soviético. Pequim não cometeu o “sincericídio em relação a Stálin”. Coisa que os chineses certamente jamais farão em relação a Mao Tse-Tung, seus erros e milhões de mortos.
Ao fim, Enríquez-Ominami fez uma longa pergunta a Dilma, cuja transcrição se faz necessária.
“A China tem uma história, uma política exterior de grande respeito à autodeterminação dos povos. Inclusive, no Chile, não rompeu as relações com Pinochet. Pragmáticos. Sempre foram pragmáticos. Agora, no debate que vem para América Latina e o Caribe – golpeados pelo vírus, as crises sanitária e política –, a pergunta é qual é o melhor sócio para América Latina e o Caribe? Uma democracia norte-americana decadente e complicada, ou um sistema político que tem pouco ou nada a ver com as democracias sul-americanas? É uma pergunta que os norte-americanos fazem. O normal é que sejamos sócios da democracia de Tocqueville, a democracia norte-americana e não de um sistema de partido único. Como responde, uma líder política como você, à ideia de que o sócio natural da América Latina é a China e não tem um sistema democrático liberal representativo como o nosso?”
Tão longa quanto a pergunta é a resposta. Que igualmente merece transcrição. É algo meio confuso, mas importante.
“Os Estados Unidos não querem sócios na América Latina. Querem subordinados. Então, isso não é uma questão de... sabe... sabe aquela... não é uma questão de vontade. É o que a realidade permite a todos nós latino-americanos, ao longo de nossa história, vejamos. A China, de fato, não é uma democracia liberal. Não é em definitivo. Não é. Quem falar que é está completamente fora de foco. A China de fato é controlada pelo Partido Comunista Chinês. Como disse aquele primeiro-ministro de Cingapura, que também conversava tanto com a China e os Estados Unidos: ‘Há uma incompreensão sobre o Partido Comunista Chinês. Ele é um partido civilizatório’. Por quê? Ele (o PCCh) está enquadrado em toda a tradição de civilização da China. Sabe o que a China acha? Pelo menos é o que eu penso. Eu acho a China totalmente pragmática como você disse. Porque a China, que era o centro do mundo... Qual é a visão que a China tem de si mesma? E ainda hoje tem. (...) Não passa pela cabeça da China interferir na forma pela qual internamente as pessoas escolhem a sua organização social, econômica, política e sua cultura. Acho que há uma diferença (em relação aos Estados Unidos) de aproximação, de visão (de política externa). O próprio (ex-secretário de estado Henry) Kissinger mostrava que a estratégia da China é diferente da nossa. O jogo estratégico ocidental mais complexo é o xadrez que tem como objetivo cercar a rainha e matar o rei. (...) O jogo chinês de estratégia mostra que a melhor forma de ganhar é conquistar não lutar. (...) Temos que entender que eles não têm a mesma visão religiosa nossa. Esse é o realismo chinês. Acho que é a maior prova de realismo chinês. O chinês é confucionista na vida pública, taoísta na vida privada e budista na morte. Mostra um realismo assustador”.
“Uma desfaçatez total”, concluiu Dilma.
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