Quando os espanhóis expandiram seus domínios sobre os países que hoje conhecemos como Peru e Bolívia, eles se espantaram com o poder energético de uma folha que os sacerdotes consumiam e lhes dava um fôlego sobrenatural para rodar e pular horas a fio no ar rarefeito dos Andes.
Os primeiros cronistas relataram de forma negativa os efeitos entorpecentes da planta, mas a empresa colonial espanhola viu nela uma oportunidade. Expandiu os cultivos e popularizou o consumo. Transformou a droga que era de uso exclusivo ritual em combustível para escravidão. Viciados e resistentes, os indígenas se transformaram em escravos muito produtivos.
Séculos depois, a coca virou cocaína e a droga virou o segundo principal produto da Bolívia. Perdendo apenas para o gás natural.
Oito meses atrás, uma série de movimentos populares iniciaram o movimento que levaria o líder cocaleiro Evo Morales a renunciar, dois meses depois. Antes de apresentar sua renúncia, Morales ensaiou se entocar na região produtora de coca, o Chapare, e de lá comandar a resistência contra o povo que não o queria mais no poder.
Mas os cartéis de tráfico, que formam a base econômica e são a fonte de controle territorial e de poder político do partido de Evo Morales fizeram as contas. Brigar pelo poder afetaria os negócios. Então, Evo renunciou.
Tudo parecia que seguiria como sempre foi na Bolívia, mas a eclosão da pandemia de Covid-19 levou o governo interino de Jeanine Áñez a aumentar o controle sobre o fluxo de mercadorias e pessoas. As barreiras sanitárias passaram a ser um incômodo para tráfico. Não que na Bolívia essas barreiras e controles fossem um impedimento real para o tráfico. Mas elas afetaram a rotina dos criminosos que não gostaram da mudança. Então, os cocaleiros e traficantes resolveram enxotar a polícia do Chapare.
“Enxotar” não é nenhuma figura de linguagem. Os traficantes colocaram para correr os agentes de segurança. Sem nenhum constrangimento, um dos líderes do Movimento ao Socialismo, o partido de Morales, fez declarações públicas dizendo que a polícia estava incomodando.
O governo boliviano reagiu. Um gesto apenas. Cortou o abastecimento de gasolina da região. Para um cidadão comum, o efeito seria ficar a pé. Mas, no Chapare, ficar sem gasolina significa não poder fazer cocaína. O derivado do petróleo é o segundo ingrediente mais importante na mistura que origina a pasta base, atrás apenas das folhas de coca, obviamente.
O golpe foi tão duro que em um mês de bloqueio, os efeitos no mercado da cocaína são extremamente relevantes. Sobram folhas e a pouca gasolina que chega é por meio de contrabando. E o preço da droga começa a subir e os traficantes, ao que tudo indica deverão literalmente se matar por ela.
Como se não bastasse a escassez de matéria prima, a redução do tráfico rodoviário, por causa da Covid-19, afetou o escoamento da produção para o principal mercado: o Brasil.
A tensão pode levar a eclosão de um novo foco de conflito na Bolívia. Asfixiado, o tráfico quer o retorno do provimento de gasolina, ou promete infernizar a vida de Áñez ameaçando a estabilidade seu governo interino.
No ano passado, as bases cocaleiras do MAS provaram serem capazes de semear violência parando o país. A guerra da cocaína tem sido uma ameaça real e constante para reestruturação da Bolívia pós-Morales.
Antes do coronavírus, a Bolívia já caminhava para uma crise profunda. Evo Morales havia torrado as reservas do país para manipular o câmbio e manter programas assistencialistas. Sem fundos, já havia partido para uma sucessão de empréstimos. Com os preços e a produção de gás em queda, o país ia perdendo a sua principal fonte de receitas.
Diametralmente ao encolhimento da economia formal, a indústria da cocaína, que só perde para a do gás, vinha se expandindo. Pode-se dizer que a frágil democracia boliviana faz parte do grupo de risco da Covid-19.
Os preços da droga estão mantidos na fonte, mas começaram a subir no Brasil. Em algumas partes alcançou 30% de aumento. Os viciados terão que absorver a conta.
Na fronteira norte do Brasil, a cocaína chega pelos rios amazônicos, vinda da Colômbia e do Peru. Nesses dois países, não há falta de combustível, mas a Covid-19 implodiu a rede logística. A gasolina e os demais percussores utilizados no refino não estão chegando nas áreas de produção.
Em Apure, estado venezuelano utilizado como base das operações de tráfico que unem as Farc e o Cartel dos Sois, gasolina se transformou em algo raro. A Venezuela sofre um desabastecimento histórico de combustível.
Os criminosos estraram em euforia com a chegada de navios tanques repletos de gasolina iraniana. Parte da carga será direcionada para o refino de cocaína.
Literalmente, as leis islâmicas condenam o transporte de drogas e insumos para sua produção. Mas os xiitas do Hezbollah ou os sunitas da al Qaeda nunca viram problema em traficar. Para eles, desde que seja para destruir os inimigos, a transgressão conta com a benção divina.
Evo Morales jamais fora denunciado na justiça por narcotráfico. Seu amigão Nicolás Maduro já é oficialmente um traficante conhecido e procurado. O líder iraniano Hassan Rouhani nunca levou essa pecha.
Mas com a aproximação ostensiva com a Venezuela, o líder iraniano pode vir a ser acusado de tráfico. Seus cupinchas do Hezbollah já perderam a pose há tempos. São traficantes com larga experiência e vínculos conhecidos com os bandos que atuam desde as plantações de coca no interior da Bolívia, até os bandidões do PCC que comandam redes de distribuição nos portos brasileiros.
Parte da gasolina que o Irã enviou para Venezuela como ajuda humanitária terminará nas mãos dos refinadores de cocaína no Apure, estado venezuelano onde estão os principais entrepostos do consórcio Farc-chavistas.
A economia do ilícito está em crise. Mas, infelizmente, ele dará uma triste lição ao mundo. Muito mais ágil e capaz de se adaptar, o crime vai se reerguer muito antes.
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