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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Sandinismo

A luta solitária dos católicos da Nicarágua contra a perseguição da ditadura de Ortega

O monsenhor Rolando Álvarez, ajoelhado em frente à Diocese de Matagalpa, ao ser impedido de fazer uma procissão para pedir o fim da repressão à Igreja na Nicarágua (Foto: Reprodução/YouTube)

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Quando o caixão com o corpo do padre Ernesto Cardenal entrou na Catedral Metropolitana de Manágua, capital da Nicarágua, mais de uma centena de pessoas começaram a ofender o defunto. Entre os vários insultos que a turba proferia em coro, o único publicável é traidor. Cardenal morreu em março de 2020, aos 95 anos, em consequência do peso da idade e dos problemas de saúde que tinha. Os baderneiros que infernizaram durante toda a celebração da missa, e obrigaram os amigos do padre a retirar o féretro por uma porta lateral da catedral, carregavam lenços e bandeiras vermelhas e negras, que são as cores da Frente Sandinista – movimento guerrilheiro dos anos 1970 que virou partido e, entre idas e vindas, está no poder desde 2007.

Cardenal não era um padre qualquer. Por isso, a fúria das milícias que apoiam o ditador Daniel Ortega. Cardenal foi um padre-guerrilheiro. Há quem diga que ele chegou a pegar em armas. Parte de sua biografia desmentida por muitos, mas que não muda a dimensão de sua atuação ao lado da guerrilha sandinista, que chegou ao poder em 1979. Com a ascensão de Ortega, Cardenal foi nomeado ministro da Cultura. Função que exerceu até 1987.

Viu de perto e de dentro a ação dos companheiros revolucionários liderados por Ortega e abandonou o governo. Não só o cargo de ministro, mas também o partido e as antigas amizades. Ainda que não tenha jamais pegado em armas como juram muitos de seus contemporâneos, Cardenal saiu atirando. Disse publicamente que os sandinistas haviam implantado uma ditadura familiar e que a Revolução Sandinista, da qual ele fez parte, havia se transformado em uma Robolución.

Uma perfeita combinação de palavras que o padre, que também era poeta de prestígio, nos legou para definir os regimes autocráticos de esquerda que grassam pela América Latina, o continente dos robolucionários.

Na sexta-feira (19), o regime de Ortega invadiu a residência do bispo de Matagalpa, monsenhor Rolando Álvarez. A operação policial que resultou na prisão (sequestro, nas palavras do secretário-geral da OEA) do bispo também atingiu sete padres e apoiadores que se encontravam no paço episcopal.

A ação contra o bispo representa o agravamento das perseguições do regime de Ortega contra membros da Igreja Católica no país centro-americano. Inconformado com as críticas feitas por padres locais, ele primeiramente mandou fechar rádios católicas e colocou seus policiais para sentar o sarrafo em quem impedisse. As primeiras imagens que começaram a circular no início do mês mostram que os fiéis que tentaram proteger as igrejas e as instalações atacadas foram subjugados ao poder de cassetetes.

Desde o início do mês, nove sacerdotes católicos foram presos na Nicarágua. Algumas igrejas estão sitiadas e os fiéis estão proibidos de entrar naqueles templos onde padres ousam questionar as arbitrariedades do regime.

A fúria do regime de Ortega contra o bispo Álvarez atingiu o nível mais alto quando o religioso saiu às ruas carregando um ostensório em uma procissão solitária para pedir o fim das arbitrariedades contra seus sacerdotes e as invasões das instalações e igrejas em sua diocese. Os policiais que bloqueavam as ruas para impedir que os católicos se juntassem ao bispo tentaram retirar o instrumento com a Eucaristia das mãos do bispo e interromperam a procissão.

A repercussão da imagem do monsenhor Rolando Álvarez ajoelhado com as mãos levantadas em frente à Diocese de Matagalpa, que ilustra essa coluna, pode ter deixado Ortega ainda mais possuído pela raiva que nutre contra o clero, que ele chama de fascista e golpista.

As relações de Ortega com a Igreja sempre foram tensas. Mas chegaram a um estágio de ruptura em 2018, quando o regime reprimiu, prendeu centenas de pessoas que foram às ruas protestar contra o regime e seu simulacro de eleição usado para validar a perpetuação de Ortega no poder. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), 355 pessoas morreram como resultado da repressão. Ortega se defende. Diz que foram apenas 200 mortos. Apenas.

Desde então, o clero local aumentou o tom das críticas ao regime. O resultado foi uma intensificação do processo de perseguição. Segundo um relatório do Observatório da Transparência e Anticorrupção da Nicarágua, entre abril de 2018 e maio de 2022, foram registrados 190 ataques contra templos e lideranças.

Não se conhece manifestação pública do papa Francisco sobre os abusos cometidos contra os católicos e seus pastores na Nicarágua. Ortega faz parte do clube de entusiastas de “ditaduras progressistas”, que pode ser resumido em uma única foto. O papa Francisco é chapa de todos eles. Recentemente revelou ter “uma relação humana” com o mais influente do bando: o ditador aposentado Raúl Castro.

Ninguém sabe se houve uma ação privada por parte do papa junto aos seus amigos bolivarianos. O fato é que seu silêncio público sugere um vergonhoso abandono de suas ovelhas.

Também não há notícia alguma de que alguns dos revolucionários da foto tenham se expressado. O silêncio nunca falou tão alto.

Cardenal, que morreu em desgraça segundo a visão dos robolucionários de Ortega, misturou a religião e a política por acreditar na tal revolução. Pagou de várias formas o preço. Levou uma suspensão imposta pelo papa João Paulo II, que durou 35 anos; viu-se escanteado e massacrado por aqueles que um dia foram seus companheiros; e assistiu no fim da vida à perseguição religiosa em seu país. Cardenal ganhou o perdão do Vaticano em 2019, já na gestão de Bergoglio, e se redimiu ao denunciar a real face e objetivo do sandinismo de Ortega e seus cupinchas. Os insultos em seu velório mostram que ele encontrou a redenção. Algo que nem Ortega e nem os seus amigos parecem estar dispostos a perseguir.

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