Já passou da hora de parar de chamar de “eleições” o teatro que acontece em regimes como Rússia, Venezuela, Irã e Nicarágua. No mais recente desses eventos, Vladimir Putin foi eleito com 87% dos votos em um simulacro de eleição sem concorrentes reais. A mesma coisa já havia se passado em 2021, quando Daniel Ortega foi reeleito para o quarto mandato consecutivo, com 75% dos votos.
Em julho, o ditador Nicolás Maduro prepara o seu mais novo espetáculo. Ele fará os venezuelanos saírem de casa para enfrentar filas e sujarem os dedos com uma tinta violeta (que é a marca de quem já passou pela cabine eleitoral) para simplesmente validar a sua “vitória” eleitoral. Maduro armou um processo eleitoral de fachada, sem opositores.
As eleições, que são um dos instrumentos da democracia, foram transmutadas com o objetivo de desacreditar a democracia. De um polo a outro da política, todo mundo parece colaborar ativa ou passivamente com isso.
Direitistas gritam aos quatro ventos coisas como a democracia não existe ou que morreu valendo-se de sua experiência ou escorando-se em casos que, muito embora se pintem como parte da democracia, estão longe, muito longe de ser isso.
O fato de haver eventos parecidos com eleições não deveria servir de argumento para imprensa, academia e muito menos líderes políticos serem condescendentes com a apropriação indevida do rito para “esquentar” autocracias
Na esquerda, há bizarrices como esta do ano passado. Quando questionado pela Rádio Gaúcha sobre o regime de Maduro, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva disse que “a Venezuela tem mais eleições do que o Brasil”. Como se não bastasse a analogia, Lula emendou na frase seguinte: “o conceito de democracia é relativo para você e para mim”.
O presidente Lula sabe muito bem que eleições não são garantia de democracia. Mas, como a maioria das pessoas – incluindo entre elas algumas entre as mais bem educadas – não entende que eleições fazem parte da democracia, mas não são o seu fim ou atestado de saúde, fica fácil falsear.
O fato de haver eventos parecidos com eleições não deveria servir de argumento para imprensa, academia e muito menos líderes políticos serem condescendentes com a apropriação indevida do rito para “esquentar” autocracias.
Na Coreia do Norte, o rechonchudinho que dá as ordens por lá foi eleito com 100% da preferência. Afinal, nem opositor ele tinha. Com a exceção do PCdoB e de certo pessoal dos partidos de esquerda no Brasil, ninguém tem muita dúvida de que Kim Jong-un é um ditador e que sua “eleição” é uma palhaçada.
Se é tão fácil reconhecer que a “eleição” não é sinônimo de eleição na Coreia do Norte, por que diabos é tão difícil entender que o que se passou na Rússia e na Nicarágua, e o que se passará na Venezuela em julho não dá para chamar de eleição?
A oposição venezuelana tenta participar do processo com uma candidata competitiva. María Corina Machado seria a única capaz de derrotar Nicolás Maduro em um processo eleitoral limpo. Mas, como ela foi inabilitada pela Suprema Corte, a filósofa e professora universitária Corina Yoris foi anunciada como a alternativa para vencer o chavismo. Maduro está no poder desde 2013. Pegou a presidência para si depois da morte de Hugo Chávez, que oficialmente ocorreu em março daquele ano, e da condição de interino organizou um processo relâmpago que formalizou a sua vitória sobre Henrique Capriles.
Em 2019, ele voltou a vencer em um processo repleto de fraudes que não foi reconhecido por dezenas de países. Mas Maduro seguiu firme. Driblou as sanções com o suporte do eixo Rússia-China-Turquia-Irã e pode se considerar um vitorioso.
Mergulhou o país inteiro na miséria. Criou a maior crise humanitária do hemisfério. Despejou milhões de refugiados nos países vizinhos e nos Estados Unidos, o grande inimigo.
O regime montou uma ficção para se legitimar. Além da possível fraude em si, Maduro tem um exército de milicianos que conduzem os eleitores dentro do que no Brasil se convencionou chamar “voto de cabresto”
Mas, com a ajuda do lobby petroleiro e com a idiotia ideologicamente motivada de assessores de Joe Biden, Maduro ganhou de presente o fim das sanções, a liberação de seus familiares traficantes e de seu principal lavador de dinheiro no exterior, Alex Saab. O seu único compromisso era fingir fazer eleições livres. Mas nem isso ele topou.
Ainda que María Corina tivesse recebido a graça de poder concorrer contra o ditador, a vitória é incerta e impossível. A candidata Yoris ficou com a missão de bater o chavismo. Torço por ela, mas as chances de sucesso são remotas. Maduro sabe conduzir o processo. A própria candidatura de Yoris só existe porque Maduro já está dando as cartas. Yoris é uma mulher com uma história digna e valente por encarar uma ditadura com histórico de esmagar seus opositores. Portanto, ela está longe – muito longe – de ser uma opositora funcional.
A questão é outra: a oposição acredita poder vencer uma eleição. Mas, mais uma vez, reafirmo: o que está para acontecer não é uma eleição. O regime montou uma ficção para se legitimar. Além da possível fraude em si, Maduro tem um exército de milicianos que conduzem os eleitores dentro do que no Brasil se convencionou chamar “voto de cabresto”.
Os venezuelanos foram ensinados a não acreditar no sigilo do voto. Votam em Maduro por medo de perder o emprego ou benefícios sociais. Como o voto não é obrigatório, as milícias praticamente “pegam o eleitor pela mão” nas áreas mais carentes e dos servidores públicos para checar se eles já votaram. Quem não tem a tinta roxa no dedo é ameaçado.
É a democracia relativa. Entendeu?
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