O ex-presidente da Bolívia, o cocaleiro Evo Morales, corroeu a frágil democracia de seu país dia após dia, sob a luz do sol e sem incômodo algum. Morales entendeu que para moldar a “democracia” ao seu modo não precisava de muito. Apenas de paciência e alquimia. Paciência para dar um passo de cada vez. Alquimia para transformar, por meio de sua roupagem étnica e ideologia esquerdista, pintar de dourado seus movimentos autocráticos transformando-os em símbolo de autodeterminação, antirracismo, justiça social, resistência e revolução.
Na Bolívia de Morales, foram anos e anos assim. Ele fez de tudo: trocou a Constituição, o nome do país, a bandeira, as leis penais e as regras eleitorais
Enquanto ainda seguimos acreditando que golpes se dão por meio de gente fardada, tanques ou tubas dispostas a depor seus governantes, nós não nos assombramos com governos que mudam as regras no meio do caminho em benefício próprio. Muito menos não ligamos uma coisa à outra quando um Poder assalta sobre outro Poder, colocando em xeque os balanços e controles que deveriam manter a harmonia e o funcionamento dos entes estatais.
Olhando mais profundamente, pode-se dizer que Evo Morales fez uma reengenharia da demografia do país, espalhando por áreas onde ele era eleitoralmente mais frágil, a sua base eleitoral cocaleira. Ele recolonizou o país com programas de assentamentos, enfiando seus apoiadores indígenas em áreas de floresta e outros ecossistemas ignorando a cultura e a vocação agrícola e econômica deles.
Morales armou perseguições políticas, chegando ao ponto de construir um suposto plano de guerra civil e de atentado contra a sua vida. Isso resultou em uma onda de centenas de presos e exilados, entre os quais estava o senador Roger Pinto Molina, que viria a se transformar em um dos maiores símbolos da perseguição.
Mas a alquimia de Evo Morales permitia que ele ainda se colocasse como vítima do conluio das elites racistas locais e do imperialismo dos Estados Unidos (a cereja do bolo de toda história desse tipo).
Depois de mudar as regras tantas e tantas vezes, Morales se viu questionado sobre seu desejo de obter o direito de concorrer à reeleição perpetuamente. Barrado pelas cortes locais, que em um ato derradeiro de autonomia disse-lhe não, Morales recorreu aos “direitos humanos” e assim contornou a proibição. Em 2019 tentou seu mandato presidencial.
Os bolivianos, que já estavam de saco cheio dele, disseram anos antes em um referendo que não aceitavam mais a reeleição. Morales, que já não se esforçava para tingir seu totalitarismo com cores democráticas, foi às urnas e roubou muito para não levar uma lavada no primeiro turno. Forçou uma segunda disputa, mas foi pilhado em sua fraude.
O povo foi para rua. Ele chegou a anunciar que faria novas eleições, mas se viu encurralado. A saída então foi um autogolpe disfarçado de golpe. Morales escalou seus cocaleiros para partir para pancadaria contra seus opositores, elevou a temperatura do país e depois, aterrissou em sua base eleitoral no Chapare (região que produz a folha de coca que vira cocaína) e de lá – sob “ameaça” de meia dúzia de militares gorduchos que fizeram um pronunciamento bem esquisito na TV – partiu para seu exílio relâmpago no México.
Pois é o México. Logo o México. O presidente-cocaleiro fugiu para o México...
Pois bem. Evo deu um milhão de golpes. Até a sua fuga fez parte de um, mas o mundo (ou parte importante dele) acreditou que ele era a vítima e não o autor.
A Bolívia vive agora um revés. O ex-aliado de Morales, o atual presidente Luis Arce Catacora, acusa o cocaleiro de golpismo. Diz que Evo Morales foi responsável por levar o país à sua mais profunda crise em anos, e agora volta a tentar mergulhar a Bolívia no caos, para tentar retomar o poder.
O autogolpe de 2019 está ficando transparente. Muita gente não vai querer ver. Muito menos reconhecer que foi enganado pelo cocaleiro.
Isso vai ficando ainda mais caótico e complexo, que a denúncia vem de um ex-aliado. Tão comuna ou até mais comuna que o próprio Evo Morales.
Os desdobramentos disso serão interessantes, pois além de ensinar como golpes e autogolpes funcionam, mostrará como companheiros se canibalizam e como o narcotráfico, que é a força motriz da economia boliviana, vai se comportar diante de uma disputa política da qual eles fazem parte.
Arce, que vem promovendo uma série de ações de repressão ao tráfico de cocaína nos territórios evistas, deixou o ex-presidente nervoso. Evo Morales não toca no assunto da droga, mas, como é de costume, fala da coca (a “inofensiva”), do povo e da opressão.
A pancada mais recente veio da Justiça. Os magistrados resolveram que Evo Morales não pode mais ser candidato à presidência. Bateram o martelo sobre algo que já era claro no passado, mas o ex-presidente ignorava. Ninguém pode presidir o país por mais de dois mandatos, sejam eles contínuos ou não.
Acostumado a tantos golpes, Morales não absorveu a pancada que veio do judiciário que ele montou e cevou, dos políticos de partido, o MAS, e da elite-amiga que ele afagou. É golpe! Ele gritou.
Evo Morales não vai se render, embora saiba que, nessa briga de gangues, já perdeu.
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais
Doações dos EUA para o Fundo Amazônia frustram expectativas e afetam política ambiental de Lula
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas