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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Autoritarismo e censura no País das Maravilhas: qualquer semelhança pode ser mera coincidência

Ilustração do livro “Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá”, de Lewis Carroll, publicado em 1871 (Foto: John Tenniel/Domínio Público/Wikimedia Commons)

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“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos.”

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar — só isto.”

O trecho acima é de “Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá”, livro publicado no final do século XIX pelo inglês Charles Lutwidge Dodgson, conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll. Humpty Dumpty é uma figura antropomórfica presente em várias obras literárias em inglês. Algumas representações mostram um homem com cabeça de ovo, mas a mais clássica é de um grande ovo com feições humanas, braços e pernas e ideias.

No diálogo com Alice, Humpty Dumpty se revela arrogante e autoritário. Do alto de um muro, ele mal olha para a interlocutora que está no solo e ela tem que erguer sua cabeça como se estivesse diante de um trono. Muitas vezes, ele a despreza em favor de sua autoridade e suposta superioridade.

Mas nada é mais útil, nesse encontro entre a menina e a criatura oval, que um fragmento do diálogo em que Humpty Dumpty fala sobre o significado das palavras. Ou melhor, o sentido que ele escolhe dar às palavras. Ainda que ele não faça sentido algum.

Quando Humpty Dumpty fala que o cada um diz só vai significar aquilo que quem manda diz que significa, ele está falando de manipulação, propaganda e censura. É a vontade se sobrepondo à verdade ou realidade. De acordo com o homem-ovo, não importa o fato ou o mais óbvio dos significados. O que vale é o que quem tem o poder decide o que é dito, ou pode ser dito.

Assim são as ditaduras. Ou assim surgem as ditaduras.

No mundo de Humpty Dumpty, não importa o que você quer dizer. Mas o que o chefe quer que você diga, ainda que a subversão dos significados envie o interlocutor para a cadeia ou lhe imponha o silêncio sob penas de multa e prisão.

O mais insólito é que ovo-homem se comporta como se estivesse na mais nobre posição de defender as palavras. Um guardião. Seus argumentos não fazem sentido algum. Aplica sobre si um verniz de virtude para ocultar o que realmente é. Uma figura despótica e autoritária.

Humpty Dumpty não se importa com nada além de sua própria visão de mundo e a sua pretensa capacidade de dizer o que cada coisa vem a ser. O que cada um “realmente” disse ou quis dizer. E o que cada um disse, mesmo sem dizer. Seu diálogo com Alice ensina sobre totalitarismo, populismo e censura.

Em outro ponto central da conversa, Alice percebe o óbvio. Um ovo-homem se equilibrando sobre um muro achando que aqui é um trono é algo bem precário. “Não acha que ficaria mais seguro no chão?”, perguntou Alice. “Chão”, no caso dos delírios ditatoriais de Humpty Dumpty, talvez pudesse ser também uma referência à realidade ou ao compromisso com a realidade factual.

Mas Humpty Dumpty, mesmo sendo um ovo, se sente invulnerável.

“Claro que não acho! Se por acaso eu caísse — o que não tem a menor chance de acontecer —, mas se eu caísse…”, disse Humpty Dumpty. Em tom cerimonial, ele completou que tinha proteção. Que o Rei lhe havia prometido “de sua própria boca” que mandaria todos os seus cavalos e todos os seus homens. “Eles me levantariam de novo num segundo.”

O encontro de Alice com Humpty Dumpty segue caótico e demarcado pela postura autoritária do ovo-homem que duvida, inspeciona, checa o que a menina diz. Mesmo uma subtração matemática absolutamente simples: 365 menos um. O ovo-homem quer ter o controle. Quer dar a palavra final.

Alice se cansou e foi embora. Disse adeus, mas Humpty Dumpty fingiu que não ouviu. Em sua mente, ela disse uma frase incompleta: “De todas as pessoas insatisfatórias que já encontrei…”. Carroll parece ter deixado a lacuna para cada um de nós buscar o seu próprio complemento para a frase.

Um ato de liberdade intelectual, criativa e até mesmo cívica. Uma liberdade cada vez mais ameaçada. Pois Humpty Dumpty não existe apenas na literatura. Ele está à espreita olhando o mundo desde cima e decidindo o que cada um pode pensar, dizer ou o que significa cada coisa dita ou escrita. Ele acha que pode tudo. Afinal, ele se diz amigo do rei. Resta saber quem é o rei.

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