O ano de 2020 começou quente. A frase surrada não tem nada a ver com debate modorrento que lançou a menina Greta à fama. O bombardeio americano ao comboio que transportava o general iraniano Qasem Soleimani foi um golpe fatal na cadeia de poder da teocracia do Irã. Soleimani era o principal militar do país e comandante de uma força de elite independente das forças armadas que tem por única missão servir aos interesses do líder supremo e à exportação da revolução islâmica para fora de suas fronteiras, as Quds. Considerado “herói” nacional, ele carregava um currículo de guerras. Sobreviveu com louvor à longa guerra do Iraque (1980-1988), treinou as milícias iraquianas que combateram os americanos na invasão iniciada em 2003, e foi peça chave no comando das ações do Hezbollah na guerra contra Israel, em 2006. Recentemente, foi quem desenhou a estratégia russa-iraniana na Síria. Geralmente festejado por seu sucesso contra os terroristas do Estado Islâmico, Soleimani também deveria ser lembrado pelo apoio ao ditador Bashar al-Assad e sua cota monumental no rastro de mais de meio milhão de mortes no conflito civil.
A gloriosa carreira militar de Soleimani, que era pupilo do aiatolá Ali Khamenei e cotado para ser presidente do Irã, tem outro ingrediente: o terrorismo. Ele e seus comandados das Forças Quds têm suas assinaturas em uma série de atentados ao longo da história. Sua estreia foi em 1983, quando caminhões carregados de explosivos foram detonados em frente a instalações militares dos Estados Unidos e da França, países que faziam parte da Força Multinacional que atuou no país durante a guerra civil. O atentado que matou 241 americanos e 58 franceses foi reivindicado pela organização palestina Jihad Islâmica, que embora tenha sido a executora, atuou sob financiamento e coordenação dos Quds e do Irã.
Em 1992 e 1994, os Quds valeram-se do Hezbollah para aplicar a sua lógica de vingança e terror. Os dois alvos foram a nossa vizinha Argentina, mostrando para o mundo que os conflitos do Oriente Médio não se restringiriam mais aos limites fronteiriços geográficos. O primeiro atentado foi contra a Embaixada de Israel, em Buenos Aires (que matou 29 pessoas e feriu outras 242). E o segundo contra a sede da Associação Mutual Israelita (Amia), que deixou um saldo de 85 mortes e cerca de 300 feridos.
O bombardeio que resultou na morte de Soleimani e de Abu Mahdi al-Muhandis – líder da milícia xiita Kataib Hezbollah (algo como “Batalhão do Partido de Deus”), que é o braço paramilitar do Irã em solo iraquiano – teve início com uma série de agressões mútuas nas últimas semanas. A primeira delas vitimou um prestador de serviços do Departamento de Defesa que morreu em um ataque perpetrado pelo Kataib Hezbollah. Os americanos revidaram com um bombardeio a um acampamento dos terroristas, matando 25 deles.
No último dia de 2019, o Kataib Hezbollah, sob a coordenação Soleimani e al-Muhandis cercou a embaixada dos Estados Unidos em Bagdá e promoveu uma série de depredações que faziam lembrar a tomada da representação americana em Teerã (1979) ou a destruição do consulado em Benghazi, que resultou na morte do embaixador Christopher Stevens e outros três cidadãos americanos na Líbia. Tudo sobre as lentes da estatal iraniana de TV, em transmissão ao vivo. Estava claro que o não haveria final feliz.
O presidente Donald Trump usou o Twitter para dizer que a agressão não sairia barata. Os aiatolás retrucaram dobrando a aposta como parte da mesma narrativa iniciada por eles desde maio de 2018, quando os americanos se retiraram do acordo nuclear com o Irã e anunciaram duras sanções contra o país. Desde então, Teerã sequestrou navios no Estreito de Ormuz, região por onde passa 30% da produção mundial de petróleo. Patrocinou atentados contra petroleiros e instalações petroleiras dos inimigos de fé, os sunitas da Arábia Saudita, e trabalhou diuturnamente para aumentar a temperatura na região por meio de grupos insurgentes aliados. Todos sob as ordens e a coordenação estratégica de Soleimani.
Em julho de 2018, o general Soleimani lançou uma ameaça aos americanos: “Venham. Estamos esperando. Vocês podem começar uma guerra, mas somos nós que determinaremos o seu fim”. E a sua morte tem sido entendida como um ato de guerra. Em certa medida é algo correto. Mas não é o tipo de guerra convencional. O Irã provocou, mas não esperava o golpe. Portanto, vai tentar retaliar na justa medida. É assim que eles trabalham. É assim que os Quds agem. O caso argentino é o melhor exemplo do modus operandi iraniano.
Em 1992, as relações entre Argentina e Irã se desmantelaram depois que o então presidente Carlos Menem determinou o cancelamento de um contrato de transferência de tecnologia nuclear para os iranianos. Teerã entendeu como uma traição e um golpe fatal para colocar de pé os seus sonhos nucleares interrompidos em 1979, quando os alemães da Siemens deixaram o país sem concluir a usina nuclear em construção. O rompimento com o Irã coincidiu com a morte do secretário-geral do Hezbollah, o clérigo xiita Abbas al-Musawi, em um ataque aéreo de Israel. Al-Musawi morreu juntamente com sua mulher, o filho e seu corpo de guarda-costas. A ação foi uma retaliação ao assassinato de três militares israelenses dois dias antes. As semelhanças com eventos da semana são didaticamente surpreendentes.
Em 18 de fevereiro de 1992, dois dias depois da morte de Al-Musawi o líder espiritual do Hezbollah, o sheik Mohammad Hussein Fadlallah proferiu uma sentença de morte e de frieza: “Israel não vai escapar da vingança. Recebemos a mensagem de que não há nenhuma necessidade de responder de forma emocional”. Fadlallah completou que “haveria muito mais violência e correria muito mais sangue”. E assim foi. Um mês depois, às 14h45 de 17 de março de 1992, um carro-bomba explodiu depois de em frente à Embaixada de Israel em Buenos Aires. O duplo ato de vingança, que combinou uma punição aos argentinos e israelenses, foi reivindicado pelo grupo Jihad Islâmica, os mesmos “laranjas” do Irã no atentado em Beirute anos antes.
O exemplo argentino ensina que a reação iraniana segue uma lógica própria e não caminha para uma guerra regular. A tática deles é mais assemelhada com a de organizações terroristas do que com exércitos formais. É isso que os faz perigosos e imprevisíveis. Essa foi a escola de Soleimani. Esse é a alma dos Quds que ele formou e liderou. Mas não está por vir nenhuma III Guerra Mundial ou apocalipse. Os iranianos cobrarão a vida do líder por meio de prepostos que podem estar tanto na Europa, quando nos Estados Unidos ou mesmo na América Latina, como nos dois casos argentinos. Isso, portanto, não deixa ninguém a salvo. Nem o Brasil. O estado de alerta que os aiatolás imporão ao mundo deveria servir de lição para mostrar a marca terrorista que o Irã carrega em seu DNA. Mas, como o mundo anda de cabeça para baixo a conta ainda será debitada no cliente errado. Quer apostar?