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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Manifestos

Como o conceito de “democracia” foi sequestrado pela esquerda

Os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT, em imagem do período em que o partido governava o Brasil (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)

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Quer vencer uma guerra? Conquiste o conceito. O Brasil, a América Latina e, por que não, o Ocidente viraram um campo de batalha onde quem ganha é quem primeiro captura a palavra-chave, consenso ou ideia que lhe permite uma situação próxima à invulnerabilidade. O tema da vez é a democracia. Mas, no passado, já foi a ética, a vida e a paz, entre tantos outros exemplos possíveis.

Todos os dias brotam de qualquer esquina um manifesto, um movimento, um discurso, uma organização em defesa da democracia. O negócio ficou tão banalizado que – se até o PSOL, PT, PCdoB e PDT, partidos brasileiros que abertamente defendem ditaduras com longo prontuário de censura, prisões arbitrárias, torturas e execuções sumárias se sentem à vontade para se colocarem como os arautos da democracia – ninguém deveria se assombrar se aparecesse um manifesto dos frequentadores da Cracolândia em defesa de um valor tão universal.

O negócio é transformar o mundo em um tabuleiro de peças brancas e negras onde ou a pessoa, movimento ou organização se posiciona de um lado, ou é empurrada a ser do outro. Mesmo que nem um nem outro seja exatamente aquilo que o jogo lhe permite ou obriga a ser.

Muito recentemente, PSOL, PT, PCdoB, PDT, MDB, PSD e PSDB não viram problema algum em confraternizar com o PCC (atenção, não é a gangue brasileira, mas o Partido Comunista Chinês) em um evento que vendeu a tese de que a democracia tal qual conhecemos é uma invenção superada e que temos (isso mesmo, temos) que aprender a aceitar a fluidez do conceito e a enxergar, sob o prisma da “aculturação”, que nem tudo que parece ser ditatorial de fato é. Prender opositores, proibir desenhos animados, suspender transmissões de telejornais em momentos em que são tratados temas desagradáveis e a manutenção de campos de concentração não é nada demais. É tudo uma questão de adaptação do conceito.

Vale relembrar como a eleição de Donald Trump levaria o mundo ao abismo. A carta de renúncia de uma ex-editora de Opinião do jornal americano The New York Times é um dos melhores diagnósticos da loucura que tomou conta da mente de muita gente nos Estados Unidos e no mundo. A democracia havia entrado na UTI e com ela a humanidade seria mergulhada nas trevas.

Goste ou não de Donald Trump, fica difícil negar que durante seus três primeiros anos de governo ele manteve a economia dos Estados Unidos no prumo, as pessoas estavam ascendendo socialmente, as taxas de desemprego eram as menores da história e ele seguia para uma reeleição garantida. Mas 2020 mudou tudo.

Primeiro, veio a pandemia. Trump começou a perder para si mesmo ao jogar para a sua base mais radical. Fazendo o que tinha que fazer contra o coronavírus da porta para dentro, mas escondendo as suas ações por meio de um discurso que só serviu como arma eleitoral. Ele não ganhou a pecha de genocida como Jair Bolsonaro no Brasil, mas ficou bem chamuscado pelo seu discurso errático no princípio da pandemia.

Depois veio a morte de George Floyd e os Estados Unidos se inflamaram. A ONG Black Lives Matter catapultou seu nome como um símbolo universal da luta antirracista. Eis o tal poder de sequestrar o conceito.

Mesmo engolfado pelas crises e derrotado eleitoralmente, Trump tinha a chance de deixar a Casa Branca maior do que quando entrou e com chances de voltar, mas preferiu jogar tudo no lixo embarcando nos eventos que desaguaram no espetáculo de 6 de janeiro de 2021, quando sua base, em apenas duas horas, se prestou ao papel de justificar toda a lorota antidemocrática que era aplicada ao seu governo mesmo antes de sua posse.

No Brasil, “defesa da democracia” virou pedestal para difamação política. É evidente que tem gente decente que verdadeiramente acredita que a democracia está por um fio e que o golpe está à espreita. Mas será que a democracia está morrendo mesmo apenas por estes meios?

A democracia está em crise. O mais tenebroso é perceber que ela está sendo asfixiada muito mais por quem pensa que defende.

É mais ou menos uma repetição da encenação petista que caiu por terra com o Mensalão, em 2005. Por décadas, o PT era o dono da ética. Ninguém fora da legenda era honesto ou poderia se dizer honesto no que se refere ao exercício da política. O sequestro do conceito era tão massivo que era impossível imaginar que uma denúncia de roubalheira não viesse de um destemido parlamentar petista, ou não tivesse um petista abnegado como fonte de informação.

Veio o Mensalão, que para quem não se lembra era basicamente a compra de apoio parlamentar com dinheiro público, e com ele um choque de realidade. O PT era um partido ordinariamente igual a qualquer outra legenda que a vida inteira foi chamada de um ninho de ladrões e corruptos pelos próprios petistas.

Alguns envergonhados pularam fora e fundaram o PSOL. Outros apostaram na falta de memória do povo e seguiram em frente. Mostrando que estavam certos, com a reeleição de Lula um ano e meio depois da descoberta da roubalheira.

Depois veio Dilma Rousseff, que afundou o Brasil na maior crise econômica da sua história (a mesma que persiste até hoje) e o Petrolão e a Lava-Jato.

Mas os mesmos petistas que apostaram no esquecimento e no sequestro de conceitos souberam dar tempo ao tempo.

O script foi simples. Aproveitaram-se da reverberação global dos chiliques dos americanos que se assombraram com a eleição de Trump um ano antes e, já nos meses que antecederam a posse, colaram no presidente eleito uma série de adjetivos que tornariam algumas de suas tosquices símbolo máximo da destruição da democracia.

Bolsonaro foi mordendo a isca e reforçando a imagem constantemente mostrada para causar vergonha, medo e repulsa.

Assim como se deu com Trump, o esforço de romper com as elites e os críticos (os mais visíveis estão na imprensa) levou Bolsonaro a se transformar no arquétipo perfeito do autocrata.

Com o pavimento pronto, quem lá nunca foi um defensor incondicional da Democracia (aquela com D maiúsculo) capturou o conceito e passou a se vender como o remédio contra o mal.

Um oportunismo flagrante, mas que dá certo, porque muita gente caiu no caldo do medo, vergonha e repulsa. Uma operação que tem feito uma boa parte das pessoas no Brasil, América Latina, Estados Unidos e no Ocidente em geral, sem dó, pisar no acelerador em uma estrada já conhecida, mas que tem sido mostrada como nova e única saída.

As críticas nas sociedades democráticas são elementos básicos. Mas a desumanização (gado), a deslegitimação (fascista) e o terror político não só contradizem os fundamentos democráticos como os corroem.

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